O senso comum ainda rejeita a expressão “Pessoa com deficiência”, PcD, mas este é o termo usado na Convenção das Nações Unidas, que hoje, por força do Decreto 6.949/2009 e do Art. 5º, § 3º, da Constituição, vigora como emenda constitucional no Brasil.
De fato, não se indica utilizar Portador de Necessidades Especiais (PNE) ou Pessoa Portadora de Deficiência (PPD) porque deficiência não significa doença e a palavra portador remete a tal. Por outro lado, o termo necessidades especiais carrega consigo a ideia de que a pessoa deverá ou precisará ser tratada de maneira diferente, o que em regra não é verdade.
O conceito de inclusão vem da ideia de que as pessoas nascem com diferenças que se acentuam e se modificam. Não há diferenças melhores ou diferenças piores. O que há é a diversidade humana. O uso de termos adequados para a referência a pessoas com deficiência é fundamental para não perpetuar conceitos equivocados ou obsoletos. (Manual de Redação, Mídia Inclusiva da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul).
A palavra "deficiência" pode ser utilizada. As deficiências são reais e não há por que disfarçá-las. Deficiência é “a terminologia genérica para englobar toda e qualquer deficiência, definida por seis categorias: sensorial (relacionada aos sentidos - audição e visão); física (relacionada aos movimentos, não importa a origem e a gravidade da lesão); intelectual (relacionada ao funcionamento das atividades cerebrais que se expressam na chamada inteligência), múltipla (mais de um tipo de deficiência na mesma pessoa) e psicossocial (transtorno psiquiátrico).”
Ao contrário de “deficiência”, a palavra "especial" não deve mais ser utilizada. Ela tem sido usada como eufemismo para compensar a deficiência. Por vezes ainda é usada quando se refere à educação (necessidades educacionais especiais), mas é preferível dizer "necessidades educacionais específicas”.
Necessidades educacionais específicas x legislação brasileira
Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que são aprovados em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, são equivalentes às emendas constitucionais.
E foi o que aconteceu com o texto da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e de seu Protocolo Facultativo, assinados em Nova Iorque, em 30 de março de 2007. Aprovado pelo Decreto Legislativo nº 186/2008 e pelo Decreto Presidencial nº 6949/2009, a Convenção Internacional se tornou parte do arcabouço legal do país, dando origem, a posteriori, à Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência, a Lei nº 13.146/15.
Quando da Convenção da ONU os Estados Partes reconheceram o direito das pessoas com deficiência à educação, determinando que devessem assegurar um sistema educacional inclusivo em todos os níveis, bem como o aprendizado ao longo da vida, garantindo, da mesma maneira, a provisão de adaptações razoáveis para todas as pessoas com deficiência.
Os Estados Membros ratificaram a ideia de que nenhum tipo de aluno poderia ser rejeitado pelas escolas e que medidas em prol da inclusão estaria nas mãos de professores, alunos, familiares, técnicos, funcionários, demais componentes da comunidade escolar e autoridades.
O Estatuto da Pessoa com Deficiência, a Lei nº 13.146/15, deu sequência às inovações trazidas pela Convenção e, no que diz respeito à educação, dedicou-lhe um capítulo inteiro. Reforça-se o dever do Estado, da família, da comunidade escolar e da sociedade em assegurar educação de qualidade à pessoa com deficiência, colocando-a a salvo de toda forma de violência, negligência e discriminação. A obrigação geral é de toda a sociedade, mas o poder público é responsável por um rol de atividades que concretizam o sistema educacional inclusivo, como, por exemplo, pelo projeto pedagógico que institucionalize o atendimento educacional especializado, pela adoção de práticas pedagógicas inclusivas, pelos programas de formação inicial e continuada de professores e oferta de formação continuada para o atendimento educacional especializado, dentre outras.
Mesmo quando se trata de instituições privadas, de qualquer nível e modalidade de ensino, aplica-se o disposto nos incisos do artigo 28 da lei 13.146/15, sendo vedada a cobrança de valores adicionais de qualquer natureza em suas mensalidades, anuidades e matrículas no cumprimento dessas determinações. À época houve questionamento neste sentido, mas o Supremo Tribunal Federal decidiu manter a vedação de cobrança, considerando-a constitucional.
Há apenas duas ressalvas contidas nos incisos IV e VI do art. 28 da Lei nº 13.146/15: as instituições privadas não são obrigadas a ofertar educação bilíngue (em Libras e na modalidade escrita da língua portuguesa) e a promover pesquisas voltadas para o desenvolvimento de novos métodos e técnicas pedagógicas, de materiais didáticos, de equipamentos e de recursos de tecnologia assistiva.
Quando se trata de processos seletivos para ingresso e permanência nos cursos oferecidos pelas instituições de ensino superior e de educação profissional e tecnológica, devem ser adotadas as seguintes medidas, não importando se a instituição é pública ou privada:
existir atendimento preferencial à pessoa com deficiência nas dependências das Instituições de Ensino Superior (IES) e nos serviços;
ser disponibilizado formulário de inscrição de exames com campos específicos para que o candidato com deficiência informe os recursos de acessibilidade e de tecnologia assistiva necessários para sua participação;
serem disponibilizadas provas em formatos acessíveis para atendimento às necessidades específicas do candidato com deficiência;
serem disponibilizados recursos de acessibilidade e de tecnologia assistiva adequados, previamente solicitados e escolhidos pelo candidato com deficiência;
haver dilação de tempo, conforme demanda apresentada pelo candidato com deficiência, tanto na realização de exame para seleção quanto nas atividades acadêmicas, mediante prévia solicitação e comprovação da necessidade;
serem adotados critérios de avaliação das provas escritas, discursivas ou de redação que considerem a singularidade linguística da pessoa com deficiência no domínio da modalidade escrita da língua portuguesa;
existir tradução completa do edital e de suas retificações em Libras.
Enfim, o Estatuto significou avanço na cidadania ao tratar de questões relacionadas não só à educação, mas também à acessibilidade, trabalho e do combate aos preconceitos e discriminação da pessoa com deficiência. Criou-se um novo conceito de integração e questões que eram desconsideradas passaram a ser discutidas.
A propósito, foi o Estatuto da Pessoa com Deficiência que trouxe a definição de Desenho Universal, hoje conteúdo básico dos cursos de Arquitetura/Urbanismo e Engenharia.
Publicamos um texto a respeito e achamos que seja de seu interesse:
Várias outras leis regulamentam o direito do PcD à educação. Leis federais, estaduais e municipais tratam com mais minúcias as regras gerais estabelecidas.
Na disciplina da Lei nº 9.394/06– Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN) – também se encontra o direito ao atendimento educacional especializado gratuito, ampliado para favorecer, além dos educandos com deficiência, aqueles com transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação. O atendimento especializado inclui instrumentos necessários à eliminação das barreiras como, por exemplo, o ensino de Libras; a utilização e o ensino do Braille; o oferecimento e a utilização de ajudas técnicas, incluindo a informática adaptada; a disponibilização da comunicação alternativa/aumentativa e de tecnologias assistivas.
A LDB prevê que os sistemas de ensino assegurem a todos os educandos mencionados:
currículos, métodos, técnicas, recursos educativos e organização específicos para atender às suas necessidades;
terminalidade específica para aqueles que não puderem atingir o nível exigido para a conclusão do ensino fundamental, em virtude de suas deficiências, e aceleração para concluir em menor tempo o programa escolar para os superdotados;
professores com especialização adequada em nível médio ou superior, para atendimento especializado, bem como professores do ensino regular capacitados para a integração desses educandos nas classes comuns;
educação especial para o trabalho, visando a sua efetiva integração na vida em sociedade, inclusive condições adequadas para os que não revelarem capacidade de inserção no trabalho competitivo, mediante articulação com os órgãos oficiais afins, bem como para aqueles que apresentam uma habilidade superior nas áreas artística, intelectual ou psicomotora;
acesso igualitário aos benefícios dos programas sociais suplementares disponíveis para o respectivo nível do ensino regular.
A título de exemplo de lei estadual, citamos a mineira de nº 13.799/2000, que dispõe sobre a política estadual dos direitos da pessoa deficiente e cria o Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa com Deficiência, o CONPED, mas vários são os estados que hoje possuem leis próprias e mantém conselhos e comissões de defesa dos direitos da pessoa com deficiência, sempre apoiados pelo Ministério Público, atuante na área.
E a realidade, como se apresenta?
Não há dúvidas que há um processo de dificuldades, luta e superação dos estudantes deficientes desde a educação básica até a chegada ao Ensino Superior.
Além das barreiras arquitetônicas nas escolas, bibliotecas públicas e outros espaços culturais, há o reconhecimento de que as pessoas com deficiência sofrem todos os tipos de discriminação e de imposição de uma sociedade que os elimina, sendo falsa a concepção de que caminhamos rumo à igualdade de oportunidades.
Pesquisa de 2013 publicada na Revista Brasileira de Educação Especial relata que o pleno acesso e a permanência da pessoa com deficiência na escola ainda não é uma realidade. Fatores culturais, políticos e sociais, de acordo com o estudo, ainda contribuem para a manutenção desse quadro de dificuldades, incluindo a negação do direito de acesso à educação, direito incorporado à Constituição em 2008. Além do mais, concluem os pesquisadores, o fato de estar “dentro” da sala de aula não implica, necessariamente, que os alunos com deficiência estejam incluídos nos processos de ensino e de aprendizagem, pois, para isso acontecer, eles precisam se mobilizar e, de fato, absorverem os conteúdos escolares.
Parece-nos que a realidade não se modificou tanto de 2013 para hoje e talvez tenham se estagnado as tentativas de coibição de práticas discriminatórias contra pessoas com condições como deficiências intelectual, mental, física e Transtorno do Espectro do Autismo.
Nesse passo, não podemos deixar de fora a pretensão do governo de publicar um decreto que altera a Política Nacional de Educação Especial, flexibilizando os sistemas educacionais. A nova política - proposta pelo governo Temer e que avança sob a atual gestão - oferece a maleabilidade de existirem também, como alternativas, escolas especiais, classes especiais e escolas bilíngues, o que, ao fim e ao cabo, anula o princípio da educação inclusiva.
Grande parte dos especialistas em educação, todavia, defende que os alunos com deficiência frequentem instituições de ensino comum, entendendo que uma modificação na política nacional de educação especial neste sentido seria retrocesso.
De toda forma, sob as leis vigentes, a perspectiva é a de que todos os estudantes devam estar juntos, aprendendo e participando e que a escola não reproduza padrões homogeneizantes.
Há amparo na legislação, especialmente na Convenção das Nações Unidas, e a pessoa com deficiência que busca seus direitos pode se valer da atuação não só do Ministério Público, mas da Defensoria Pública, da Ordem dos Advogados do Brasil, do Ministério Público do Trabalho, das Comissões e Conselhos existentes.
Vale lembrar do Guia de Atuação do Ministério Público para a Pessoa com Deficiência, que contempla sugestões de atuações do órgão, em casos individuais ou coletivos, reforçando a necessidade de se implementar o direito à acessibilidade, ao atendimento prioritário, ao concurso público e à educação inclusiva, nosso assunto de hoje.
Por fim, finalizemos com a fala de Gabriel Pigozzo Tanus Cherp Martins. O professor analisa que o principal objetivo para 2020 é fazer da escola um local acessível e de permanência, com qualidade, para todos. Para ele nossas leis que tratam da matéria ainda são excludentes, pois estabelecem uma política que escolhe quem fará parte deste “todos”. Não hesita em perceber os inúmeros avanços em função da promulgação destas normas, mas pretende mais, pretende que asseguremos igualdade e equidade, deveres e direitos, ser e estar.
“Repensar a forma e os discursos que permeiam a educação inclusiva é algo que precisa ser realizado urgentemente na busca da promoção de uma inclusão de direitos. Direito de aprender, de estar, de ser e de permanecer. Direito de ir e vir com autonomia, direito de ter sua cultura, língua e identidade respeitadas. Prática e reflexão são indissociáveis. Assim como docência e discência. Respeito e alteridade. Estética e ética.” Gabriel Pigozzo Tanus Cherp Martins
E que qualquer atualização na política nacional de inclusão seja para monitorar e aperfeiçoar sua implementação e não retroceder a práticas já ultrapassadas.
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