No mês da consciência negra, é necessário lembrar que a lei de ensino da história da África chegou à maioridade. São 18 anos de vigência da Lei 10.639/03. Como essa lei amadureceu?
A lei foi uma conquista do Movimento Negro no mesmo ano de um dos marcos na luta contra o preconceito, com a instituição oficial do dia 20 de novembro como Dia Nacional da Consciência Negra, em 2003. A partir de então as escolas brasileiras passaram a incluir em sua grade curricular a revisão da história brasileira e a valorização das tradições, culturas e lutas do povo negro dentro da sala de aula.
Leia:
Pesquisadores do tema e professores que atuam no dia a dia de escolas da rede municipal de ensino, todavia, informam que ainda é longo o caminho para a ideal implementação da norma.
Uma das questões pontualmente consideradas pela professora Alessandra Pio, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, em entrevista para o site RioOnWatch, é a dificuldade de mensuração do que está sendo cumprido ou não da lei. Não há, melhor dizendo, como fiscalizar se a lei está sendo respeitada. É como se a maioria das instituições de ensino, nos dizeres da professora, já se sentisse cumprindo a normativa por, por exemplo, selecionar um professor negro para organizar o evento da Consciência Negra no mês de novembro.
E então, ainda nos dizeres da educadora, fiscalizar se as escolas estão trabalhando ou não a cultura afro-brasileira em seus espaços se torna uma responsabilidade dos próprios professores pretos, excluindo-se a responsabilidade das pessoas brancas.
Em 2012, o Ministério da Educação, em parceria com a Unesco, realizou uma pesquisa que tinha por objetivo identificar, mapear e analisar as iniciativas desenvolvidas pelas redes públicas de ensino e as práticas pedagógicas realizadas por escolas pertencentes a essas redes na perspectiva da Lei n.º 10.639/03. À época verificou-se que as principais barreiras para o avanço da norma era a desinformação ou desconhecimento sobre a alteração da LDB, bem como as normas que orientavam a mudança. Problema que, passados 18 anos da vigência da norma, não pode mais ser alegado.
Racismo Religioso na Educação Pública
Em 2018, quando a lei fez seus 15 anos, muito se falou sobre a efetividade (ou falta dela) dos artigos que modificaram a LDB em 2003. Naquele ano se tornaram públicas várias histórias de professores que, ao inserir a temática africana dentro de sala de aula, foram vítimas de ataques por parte dos pais por ignorância, preconceito e intolerância religiosa.
Hoje, infelizmente, a situação não parece melhor em relação à intolerância religiosa e os ataques às religiões afro-brasileiras - uma vertente do fenômeno de racismo – continuam, bem como os discursos de ódio feitos contra as religiões de matriz africana. Tudo isso faz parte da perseguição a um conjunto cultural que diz respeito ao patrimônio cultural decorrente do legado civilizatório africano no Brasil e reverbera de forma consistente dentro das escolas.
Ou seja, passados 18 anos da vigência da Lei 10.639/03, ouçam-se aqueles que afirmam a sua não efetivação nos espaços escolares, o que é, sem dúvida, uma nítida expressão do racismo institucional brasileiro, que deve ser enfrentado coletivamente.
A pesquisa acadêmica A Lei 10.639/2003 e sua maior idade. Há o que se comemorar? também merece destaque.
O estudo reafirmou e consolidou impressões e práticas sobre a implementação da normativa, em especial chamando para a necessidade da concretização das metas estabelecidas no Plano Nacional. Atesta que não há mais necessidade de se fazer normas e documentos para a efetivação da Educação das Relações Étnico-raciais nas escolas brasileiras e sim de vontade política dos executivos federal, estaduais e municipais, e um monitoramento e cobrança mais rigorosa das instâncias responsáveis pela fiscalização do cumprimento da Lei 10639.
A conclusão é que a lei atingiu sua maioridade sem se institucionalizar e galgar o degrau de política pública; sem se enraizar nos projetos políticos pedagógicos da escola, apesar do trabalho de muitos professores e diretores de escolas por todo o Brasil.
Infelizmente, de acordo com a investigação, eles atuam de forma individualizada e, na verdade, precisariam de ações junto à comunidade escolar, principalmente nos tempos que vivemos a exacerbação do ódio, do racismo e da homofobia. Desta forma, não conseguem romper a estruturalidade do racismo na escola.
Consequências da pandemia
Pesquisa da Porvir, plataforma de conteúdos e mobilização sobre inovações educacionais do Brasil, apresentou os impactos da pandemia do coronavírus sobre o ensino médio em diferentes aspectos: evasão, atraso na implementação dos novos currículos, ensino remoto, Enem e clima escolar. Em comum, todas as reportagens apontaram para um cenário ainda mais desafiador para os estudantes negros.
Mais atingidos pelo coronavírus por residirem em áreas vulneráveis com menor cobertura de serviços de saúde e com menos acesso a computadores e internet para acompanhar as aulas remotas, esses estudantes foram os que mais tiveram dificuldades para seguir aprendendo em 2020.
Esses obstáculos vão provavelmente agravar uma realidade anterior à pandemia: ao final da trajetória escolar, quando conseguirão concluir o ensino médio, os jovens negros terão aprendido menos e se sentirão menos motivados a prestar o Enem e a ingressar no ensino superior.
Projeto de educação antirracista
Enquanto 74% dos jovens brancos concluíram o ensino médio com até 19 anos, essa é a realidade para apenas 53,9% dos negros e 57,8% dos pardos, segundo dados do Todos Pela Educação, de 2019.
Fato, portanto, que se uma sociedade se propõe a uma educação antirracista a ela não basta abordar história afro-brasileira dentro da sala de aula. É preciso discutir o racismo estrutural e, consequentemente, os privilégios em todos os setores e buscar formas de minimiza-los.
A obrigação é coletiva, ou seja, é do poder público e da sociedade civil. A esse respeito, temos alguns exemplos interessantes, no sentido de retirar o negro da situação do pobre, do precarizado, do servil.
Há iniciativas que pretendem a equidade social e racial na educação e que atuam em parceria com escolas particulares de São Paulo, por exemplo, que parecem estar dando certo. A ideia é de que “sem pluralidade, o ambiente escolar e todos os processos envolvidos na aprendizagem são prejudicados”.
O projeto funciona com um grupo de pais e/ou apoiadores levantando recursos suficientes para garantir 50% da mensalidade da escola e, assim, subsidia um número específico de bolsas em um ano letivo e a instituição de ensino se compromete a garantir a outra metade. O movimento de captação de recursos continua e a programação é admitir novas bolsas a cada ano, além de mantê-las até a formatura de cada aluno no ensino médio. O programa é visto como uma reparação histórica e não como uma ação assistencialista e normaliza a escola plural, como ela deve, de fato, ser.
Supremo Tribunal Federal
O racismo se tornou crime inafiançável e imprescritível em 1989, quando regulamentado o inciso XLII do artigo 5º da Constituição; agora, no dia 28 de outubro de 2021, o Supremo Tribunal Federal equiparou a injúria racial ao crime de racismo, considerando-a também imprescritível.
A decisão foi elogiada pelo presidente do Instituto Luiz Gama, professor Silvio de Almeida. Para ele, "apesar de o Direito Penal ser um instrumento bastante limitado para o enfrentamento do racismo, a decisão do STF foi acertada e com isso será possível que as ofensas de cunho racista tenham o tratamento adequado por parte do sistema de Justiça do Brasil".
Enfim, deixar claro que a Lei 10.639/03 não foi implementada adequadamente e abrir o debate de forma franca e ampla é uma necessidade: uma obrigação de uma sociedade que precisa acordar para o fato de que o racismo é um sistema de opressão que nega direitos e não um simples ato da vontade de um indivíduo.
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