A pergunta, por certo, é retórica. Dificilmente as reservas de mercado são benéficas para a sociedade. E, quando existem, reservas e até monopólios devem ser acompanhados por monitoramento rigoroso e antecedidas por estudos meticulosos.
No Brasil, a cultura de estudos prévios para tomada de decisões não é comum, seja na área administrativa ou judicial. Mas isto mudou e agora a legislação exige uma nova conduta.
Administradores públicos são obrigados a fazer Análise de Impacto Regulatório e a considerar dados que incluem até mesmo as melhores práticas internacionais (Decreto 10.411/2020, Art. 6º). Para Juízes esse tema veio descrito na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, que lhes impõe a reflexão sobre as consequências práticas de suas decisões.
É importante tratar desse tema, ou seja, da necessidade de escolhas técnicas e fincadas em boas práticas, porque o caso dos cursos de Medicina tem estranho paralelo com fatos ocorridos em Portugal nas últimas décadas.
Naquele país, houve uma crise na oferta de médicos gerada, segundo textos locais, por uma política restritiva do Poder Público em relação ao número de vagas nos cursos de Medicina e, paulatinamente, nas especializações. A este respeito, a literatura técnica portuguesa concluiu, por exemplo:
Falta de médicos?
Embora o número de médicos em Portugal por 1000 habitantes tenha sido superior à média da União Europeia (UE) 27 países entre 1995 e 2013, prevê-se uma escassez de médicos, nomeadamente de clínicos gerais/médicos de família (GPs) e de médicos de saúde pública em três documentos de pesquisa científica, três documentos políticos e um documento de análise de políticas. Isso foi atribuído à política de baixo numerus clausus limitando o ingresso nas faculdades de medicina entre 1979 e 2000, combinada com a aposentadoria planejada de grande número de médicos nos próximos anos. Em 1979, o numerus clausus era 805; em 1985, caiu para 272; e em 2001, passou para 945. (OLIVEIRA, Ana Paula Cavalcante de et al. Desafios para assegurar a disponibilidade e acessibilidade à assistência médica no Sistema Único de Saúde. Ciência & Saúde Coletiva, v. 22, p. 1165-1180, 2017., grifamos)
A política de numerus clausus é uma política de limitação de vagas de Medicina, um controle estatal mais radical que a regulação brasileira de ensino, mas menos contundente do que a política de proibição de novas vagas, instaurada em 2018 no Brasil.
Outro artigo tratava, já no seu resumo, de mais algumas questões relacionadas a escassez de médicos em Portugal:
[…] No que diz respeito aos médicos, a procura parece exceder persistentemente a oferta, uma vez que muitos médicos trabalham em várias instituições ou fazem horas extraordinárias no setor público, e o número de médicos estrangeiros a exercer em Portugal está a aumentar. Nos últimos anos, o número de escolas médicas e graduados em medicina aumentou, mas pode não ser suficiente para atender às necessidades futuras. No que diz respeito aos médicos, a procura parece exceder persistentemente a oferta, uma vez que muitos médicos trabalham em várias instituições ou fazem horas extraordinárias no setor público, e o número de médicos estrangeiros a exercer em Portugal está a aumentar. Nos últimos anos, o número de escolas médicas e graduados em medicina aumentou, mas pode não ser suficiente para atender às necessidades futuras. […] (Martins J, Biscaia A, Antunes AR. Profissionais que entram e saem do sistema de serviços de saúde português. Cahiers de Sociologie et de Demographie Medicales. 2007 Jul-Set;47(3):275-291. PMID: 17665837.))
Mesmo sem analisar todo o ocorrido e considerando que a crise ocorreu em país com caraterísticas diversas em relação ao Brasil, esses relatos curtos são um aviso a respeito dos riscos da manipulação da oferta de ensino na área de Medicina. Mas o tema não parece ter sido sopesado em 2013 e 2018, quando o país implantou a política do “Mais Médicos” e quando a suspendeu em relação a novas vagas para estudantes de Medicina.
Não obstante essa omissão, dá para imaginar fatos similares ocorrendo no Brasil. Possível até encontrar casos de escassez, especialmente durante a pandemia e em algumas regiões do país, que já vivem essa realidade.
Agora, o Ministério da Educação busca subsídios para criar uma nova política e deve fazer isso de forma isenta, deve evitar grupos de pressão que naturalmente se formam diante da perspectiva de ajustes na regulação de um setor.
Jean Tirole, um economista laureado com o “Nobel” de Economia e preocupado com a economia do bem comum, explica que:
Um domínio no qual os lobbies são particularmente influentes diz respeito às restrições, ou mesmo interdições, da concorrência. É natural que as empresas estabelecidas – dos acionistas aos funcionários – desejem frear recém-chegados ou obter compensações financeiras do Estado em caso de perda de sua reserva de mercado. (Tirole, J., Telles, A. Economia do bem comum, versão Kindle, p. 394)
No caso aqui analisado, “empresas” são as instituições que ofertam ensino médico privado, notadamente as que atuam em grande escala, e “funcionários” são os médicos. Todos têm legitimidade e qualidade para discutir o tema da regulação do ensino médico, mas há conflito de interesses. Mais que isso, há atuação efetiva para manter a reserva de mercado e os ganhos financeiros decorrentes.
Em contrapartida, como ressalta o Economista francês, existem efeitos muito positivos que podem resultar da livre concorrência. Nesse sentido, depois de perguntar “porque a concorrência está a serviço da sociedade?”, o renomado autor apresenta três razões:
Porque o fomento do acesso aos mercados ajuda a equilibrar os preços;
Porque a concorrência “impele as empresas a produzir de maneira mais eficiente e a inovar”; e
Porque a concorrência gera integridade do mercado, na medida em que “os atores não podem obter rendas [benefícios] injustificadas dos tomadores de decisão públicos”.
Esta última razão é muito importante e talvez seja o sentido da palavra “livre” quando a Constituição brasileira trata de livre concorrência e livre iniciativa na área de ensino. Atuando livremente as instituições tornam-se mais responsáveis por seus atos. Sem uma intervenção excessivamente restritiva, as únicas proteções das instituições são a qualidade e a eficiência. Por outro lado, o estado se afasta da possibilidade da concessão de favores para poder tomar posição equidistante de regulador dos serviços e da concorrência.
Enfim, pensando no passado, analisando a experiência internacional e observando a literatura especializada em concorrência, é fácil concluir que a reserva de mercado no ensino médico pode ser um risco, um evidente risco para a sociedade. Concorrência, por outro lado, pode ser um bom caminho para garantir qualidade e inovação para a saúde pública no futuro.
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