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Ana Luiza Santos e Edgar Jacobs

Algumas linhas sobre as repercussões da pandemia nos contratos civis

Em fevereiro de 2020, via Portaria nº 188, do Ministério da Saúde, declarou-se Emergência de Saúde Pública de Importância Nacional em razão da situação pandêmica instaurada. Logo depois, a Lei 13.979/20, também de fevereiro, dispôs sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019. A situação era – e ainda é - reconhecidamente excepcional, bem como as repercussões sociais e econômicas.


Apesar de o Brasil não ter tido um controle central, nacional, em relação às medidas de polícia administrativa, as adotaram os estados e municípios – autorizados pelo STF - o que suscitou restrições de funcionamento de várias atividades e estabelecimentos empresariais e suspensão temporária da prestação de serviços públicos e privados. As sequelas destas determinações são visíveis.


Consumo e cumprimento dos contratos


Não resta a menor dúvida de que o consumo foi afetado pela diminuição da atividade econômica no país, a incerteza no porvir, além do aumento nas taxas de desemprego. De fato, houve impactos nas relações obrigacionais como um todo. Em se tratando de contratos já celebrados, de trato sucessivo ou diferido no tempo, questões relativas às dificuldades no cumprimento e danos que possam resultar exigiram respostas do direito obrigacional.


Exemplos significativos são dos contratos firmados com as empresas de transporte aéreo e com as empresas de turismo. Quando declarada a pandemia, o adiamento e cancelamento de viagens e eventos repercutiram bastante. Embora as companhias continuassem operando, isso passou a ocorrer em escala bem menor e um grande número de viagens foram postergadas ou canceladas.


Neste caso específico, o Executivo editou uma norma extraordinária disciplinando especificamente o setor: a Medida Provisória 925/2020, convertida na Lei 14.034/20, que também prevê medidas para apoiar as companhias aéreas, que viram o faturamento cair.


A lei concedeu às companhias aéreas o prazo de 12 meses para reembolsar o consumidor que teve seu voo cancelado entre 19 de março e 31 de dezembro de 2020. O valor será corrigido com base no INPC e a regra se aplica a casos de atraso e interrupção de voo.


A companhia aérea também poderá oferecer ao consumidor a opção de ele receber um crédito para ser utilizado na compra de outro serviço oferecido pela empresa ou ainda a reacomodação do cliente em outro voo e, por fim, a remarcação imediata da passagem.


É claro que o cancelamento ou a posterga de voos determinado por medidas de saúde pública não é responsabilidade do transportador, mas isso não o exime da obrigação em relação aos passageiros pela eventual hospedagem e alimentação caso necessária e até concluir o transporte por outro meio, se possível. Tudo em decorrência das regras específicas do contrato de transporte e do tipo de responsabilidade deste fornecedor.


Impossibilidade de cumprimento do contrato


As medidas de polícia editadas pelo Poder Público em estados e municípios para o enfrentamento da pandemia são circunstâncias a que se submetem os particulares. Se contratos foram celebrados e determinada realidade fática altera de modo que dificulte ou impeça o seu cumprimento posterior, é preciso incidir as soluções já previstas na lei.


Neste ponto, vejamos que há contratos cujo objeto tem prestações sucessivas no tempo e também aqueles em que há um tempo entre sua celebração e a realização da prestação, de modo que a pandemia perturba a relação contratual. A realização de uma festa, por exemplo, pode ser afetada em razão das medidas adotadas pelo Poder Público, tornando-se impossível o cumprimento da locação da casa noturna para realização do evento, que não poderá ocorrer em razão da proibição expressa do município ou do Estado de que ocorra em determinada época.


Mesmo quem tenha comprado passagens aéreas para viagens em datas futuras pode ser prejudicado por medidas de autoridades locais do destino que impeçam a entrada de visitantes naquela localidade.


Qualquer seja o caso, é preciso verificar se a impossibilidade é absoluta ou relativa, ou seja: se for relativa, é impossibilidade apenas por um certo período e ainda poderá ser realizada, mas não no prazo originalmente previsto. Se for absoluta, deve extinguir a obrigação e, dentro do possível, caso a caso, deve-se fazer a restituição das partes ao estado anterior. Essa já é uma previsão de nossa lei civil, sem maiores complicações.


Inclusive, caso as partes desejem, podem manter o vínculo, reajustando o acordo com o conteúdo da prestação devida, sempre utilizando-se das regras de interpretação do negócio jurídico presentes no Código Civil, em especial a que se refere que a interpretação do negócio jurídico deve lhe atribuir o sentido que corresponder à boa fé dos contratantes no momento da negociação, consideradas as informações disponíveis naquele momento.


Incerteza de cumprimento do contrato


O isolamento social suscitado por pandemias pode dar causa a uma situação imprecisa em relação a contratos já celebrados: eles serão realizados?


A simples incerteza de cumprimento tem previsão legal, via exceção de inseguridade ou insegurança, prevista no art. 477 do Código Civil, mas se limita à hipótese em que, depois de concluído o contrato, houver diminuição do patrimônio de um dos contratantes que comprometa ou torne duvidosa a prestação pela qual se obrigou. Neste caso, a outra parte pode se recusar à prestação que lhe incumbe até que a outra satisfaça a que lhe compete ou dê garantia bastante de satisfazê-la.


Ampliando o entendimento, a pandemia pode trazer para uma das partes uma diminuição do patrimônio que lhe impeça de cumprir com o contratado e tal solução pode ser utilizada tanto para contratos civis quanto para contratos empresariais, nos quais a capacidade de cumprimento da prestação no futuro é colocada em dúvida.


Se o contrato é de consumo, por exemplo, nos casos de viagens, locações ou serviços para eventos ou festas familiares, ainda é preciso verificar que existe a incerteza sobre a utilidade da prestação, o que às vezes requer uma revisão do contrato, pois nem sempre uma viagem ou festa postergada (em uma semana ou um ano, que seja) será mais necessária. Os princípios da boa-fé da conservação do negócio jurídico devem estar sempre presentes.


Contratos educacionais


Os contratos educacionais não se encaixam em nenhuma das hipóteses aventadas acima. Como viemos expondo ao longo dos meses, as autoridades públicas suspenderam as aulas de suas redes pública e particular de ensino ainda em março de 2020, atentos a seus comitês designados para tratar das questões relativas à pandemia Covid-19. O isolamento social foi o motivo da adaptação dos objetos dos contratos educacionais, gerando a necessidade de ensino a distância ou de suspensão total da oferta de atividades educacionais por algum momento.


Neste caso em particular, podemos falar em um ato responsavelmente imposto pelo estado, um caso fortuito ou força maior imposta pelas circunstâncias. Eventuais prejuízos não podem recair sobre as partes e sim exatamente sobre o estado.


Na prática, as escolas, de acordo com as determinações do CEE, não foram desincumbidas de suas obrigações; pelo contrário: tiveram que entregar o acertado quando do contrato firmado no ato da matrícula, tudo de acordo com o projeto pedagógico definido anteriormente.


Não houve descontinuação dos serviços, pois as aulas remotas se iniciaram na maioria das escolas particulares na segunda semana após a paralização das atividades, o que exigiu, a propósito, um preparo abrupto (e custoso) tanto operacional quanto de pessoal.


A logística dessa mudança inesperada do presencial para o EAD – que definitivamente não ocorreu por vontade das instituições, mas por uma determinação do estado em razão de uma questão de saúde pública mundial – não se realizou sem custos, o que é de crucial importância frisar, como não está sendo sem custos a implementação do recente sistema híbrido ao qual as escolas estão se adaptando.


Portanto, não apenas por questão de boa e contemporânea técnica, mas por razões práticas, é bem mais relevante enfatizar a necessidade de boa-fé objetiva das partes - de condutas no sentido de preservar e cumprir os contratos - que sugerir cancelamento ou revisão de forma genérica.


Em relação aos contratos educacionais, enfim, não há que se falar em revisão contratual ou cancelamento e sim a manutenção do contrato com a consideração pelas partes de que as obrigações são dinâmicas, tal como um processo que se desdobra no tempo e se sujeita às vicissitudes dos fatos.


As partes devem agir com boa-fé, entendendo que os objetivos – ensino e aprendizagem – serão cumpridos mesmo sob novas circunstâncias.



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