A ANPD apresentou um estudo de caráter preliminar para fomentar o debate público e subsidiar futura tomada de decisão sobre o tema específico do tratamento de dados pessoais de crianças e de adolescentes, em sintonia com as normativas internacionais e a nacional, mais especificamente o art. 14, caput da LGPD, que explicita que o tratamento dos dados desses titulares deverá ser realizado em seu melhor interesse.
É que a interpretação dos parágrafos do art. 14 vem sendo objeto de muita controvérsia, configurando uma situação de incerteza jurídica para os agentes de tratamento, justamente em razão da indefinição sobre quais hipóteses legais autorizam o tratamento de dados pessoais de crianças e adolescentes.
O § 1º do art. 14 estabelece que “o tratamento de dados pessoais de crianças deverá ser realizado com o consentimento específico e em destaque dado por pelo menos um dos pais ou pelo responsável legal.”
Já o § 3º do mesmo artigo prevê que a coleta de dados de crianças poderá ser realizada sem o consentimento referido no § 1º quando for necessário para contatar os pais ou responsável legal ou para a proteção da criança.
De acordo com o estudo publicado pela ANPD, há aqueles que entendem que o consentimento seria a única hipótese legal apropriada para o tratamento de dados pessoais de crianças. De outro lado, há quem sustente que outras hipóteses legais previstas nos arts. 7º e 11 da LGPD, tais como execução de políticas públicas e realização de estudos por órgãos de pesquisa, poderiam legitimamente amparar, entre outras operações de tratamento, o compartilhamento de dados pessoais entre órgãos públicos ou entre estes e uma universidade pública.
E ainda há uma outra interpretação sobre o tema, segundo a qual os dados de crianças e adolescentes seriam equiparados a dados sensíveis. Neste caso, o tratamento somente poderia ocorrer com base nas hipóteses legais previstas no art. 11 da LGPD.
O estudo possui quatro partes:
É analisada a aplicação do consentimento dos pais ou responsável legal, conforme o art. 14, §1º da LGPD, como única hipótese legal para o tratamento de dados pessoais de crianças.
É analisada a aplicação exclusiva das hipóteses legais previstas no art. 11 ao tratamento de dados pessoais de crianças e adolescentes, haja vista a sua possível equiparação a dados sensíveis.
É discutida a aplicação das hipóteses legais previstas nos arts. 7º e 11 da LGPD ao tratamento de dados de crianças e adolescentes, observado o princípio do melhor interesse.
Exposição de uma proposta de enunciado, para fins de fixação de interpretação sobre o tema em questão.
Notas gerais
A introdução do estudo realizado pela ANPD é muito interessante e merece ser lida na íntegra; ela relembra como nem sempre crianças e adolescentes compartilham informações conscientemente e que, apesar de muitas das vezes esses atores estarem até mais cientes quanto à utilização comercial de seus “rastros digitais” do que seus pais ou responsáveis, eles ainda não possuem conhecimento/maturidade para a efetiva compreensão da utilização desses dados inferidos e do seu valor para as empresas.
Mesmo os adultos não possuem total compreensão do que é feito com os seus dados ou não entendem sobre o quê, de fato, estão autorizando ou consentindo e assim também o fazem quando consentem com a coleta de dados das crianças e dos adolescentes.
Em relação ao tratamento de dados pessoais de crianças e de adolescentes, a lei determina que deverá ser sempre realizado em seu melhor interesse, princípio adotado na Declaração dos Direitos da Criança em 1959 e na Convenção Internacional dos Direitos da Criança, aprovada pela ONU em 1989 e ratificada pelo Brasil em 1990.
Tal princípio não é diretamente mencionado na Constituição Federal e no ECA, mas é ele que inaugura a fase da proteção integral da criança e do adolescente. O melhor interesse é um conceito com natureza tripla, podendo ser considerado um direito subjetivo, um princípio jurídico fundamentalmente interpretativo e uma regra processual.
Interpretação nº 1 – aplicação do consentimento (art.14, §1º) como a única hipótese legal para o tratamento de dados pessoais de crianças
Interpretação restritiva, na qual o consentimento dos pais/responsável seria dispensado apenas quanto às duas hipóteses previstas no art. 14, §3º, isto é, em caso de coleta de dados para contatar os pais ou o responsável legal, ou ainda, para a sua proteção, e em nenhum caso poderiam os dados ser repassados a terceiro sem o consentimento em questão.
Nessa linha, todo e qualquer tratamento de dados pessoais de crianças ficaria condicionado à obtenção do consentimento específico de pelo menos um dos pais/responsável, mesmo quando, por exemplo, fosse aplicável outra hipótese da lei, como para cumprimento de obrigação legal ou regulatória pelo controlador, para execução de políticas públicas previstas em lei e regulamentos, para realização de estudos por órgão de pesquisa, para a proteção da vida ou da incolumidade física do titular ou tutela da saúde.
No texto do atual §1º do art. 14 excluem-se os adolescentes e a exceção ao consentimento é a eventual necessidade de contatar os pais ou o responsável legal ou quando a coleta de dados for necessária para a sua proteção.
Nessa linha, é necessário refletir se o consentimento parental como única hipótese legal assegura, em todos os casos, a proteção ao melhor interesse da criança, pois, por exemplo, em relação às políticas de privacidade, muitas vezes não são de fácil compreensão pela população e às vezes sequer são lidas. Também, de acordo com o estudo, é atribuir toda a responsabilidade da questão aos pais, como se estes fossem os únicos responsáveis por avaliar se o tratamento de dados atende ao melhor interesse da criança.
Vale enfatizar que o melhor interesse da crianças pode, em alguma circunstância, contrariar os interesses dos pais/responsável, em nítida violação aos seus direitos fundamentais.
O Comentário Geral/ONU nº 25 sobre os direitos das crianças em relação ao ambiente digital reconhece, em diferentes trechos, que há um potencial antagonismo entre os interesses das crianças e o de seus pais ou responsáveis, inclusive expressamente desaconselhando o uso do consentimento em determinados casos; um dos mais importantes se refere às ameaças à privacidade das crianças quando pais ou membros da família, colegas ou outros, por exemplo, compartilham fotografias online.
Este documento das Nações Unidas ainda apresenta quatro princípios gerais que devem servir de guia para a determinação de medidas necessárias para garantir a realização dos direitos da criança no ambiente digital, quais sejam, não discriminação, melhor interesse, direito à vida, sobrevivência e desenvolvimento, e respeito às opiniões e ao desenvolvimento progressivo das capacidades das crianças e dos adolescentes.
A interpretação restritiva trazida neste primeiro tópico poderia trazer dificuldades ou até impedir o acesso pela criança e pelo adolescente à internet em igualdade de condições, podendo promover exclusão digital e o princípio da não-discriminação não estaria sendo observado. Também, nos casos em que os agressores são os próprios pais ou responsáveis, o consentimento para tratar e identificar as crianças vítimas poderia dificultar ou impedir a ação protetiva do Estado.
A conclusão da ANPD é que a interpretação de que o tratamento de dados de crianças somente pode ser realizado com base no consentimento dos pais ou do responsável legal apresenta uma série de limitações jurídicas e dificuldades de aplicação prática. Entre essas, o fato de que concentrar toda a proteção a esses sujeitos vulneráveis na hipótese legal do consentimento levaria a uma ilusória ideia de controle, que poderia, em muitas situações, implicar a violação de direitos fundamentais de crianças.
É preciso respeitar o princípio geral do melhor interesse da criança e do adolescente, o qual não se confunde e não pode ser limitado à ideia do consentimento. A lei inclusive faz uma ressalva, autorizando a coleta de dados pessoais de crianças sem o consentimento dos pais ou do responsável quando for necessário para a sua proteção (§ 3º do art. 14).
A conclusão sobre a interpretação restritiva do art. 14 é que:
traduz-se no consentimento parental como sendo a única hipótese legal aplicável ao tratamento de dados pessoais de crianças. Em que pese tal interpretação buscar maior proteção a este grupo de vulneráveis, a sua aplicação poderá conflitar com o melhor interesse da criança, podendo, em última análise, dificultar ou inviabilizar o tratamento de dados pessoais em hipóteses legítimas, tais como a adoção de políticas públicas que os beneficiem, ou até mesmo para a tutela de sua saúde em procedimento realizado por profissionais de saúde, serviços de saúde ou autoridade sanitária.
Interpretação nº 2 – aplicação exclusiva das hipóteses legais previstas no art. 11 da LGPD para o tratamento de dados pessoais de crianças e adolescentes
A segunda interpretação decorre da equiparação dos dados de crianças e adolescentes a dados pessoais sensíveis.
O art. 7º estabelece as hipóteses legais para o tratamento de dados pessoais, sendo mais amplas do que o rol trazido pelo art. 11. Já o art. 11 dispõe sobre tratamento de dados pessoais sensíveis, com hipóteses mais restritivas, em função da sua natureza, não contemplando, por exemplo, as hipóteses legais de legítimo interesse do controlador ou terceiro, tampouco para execução de contrato e proteção do crédito.
O inciso I do art. 11 determina que o tratamento de dados pessoais sensíveis somente poderá ocorrer quando o titular ou o seu responsável legal consentir, de forma específica e destacada, para finalidades específicas, de forma similar ao previsto no art. 14, §1º, para o tratamento de dados de crianças. No art. 11, inciso II, são elencadas as situações específicas em que pode haver tratamento de dados pessoais sensíveis sem consentimento do titular, as quais também seriam aplicáveis ao tratamento de dados de crianças e adolescentes.
Essa interpretação se diz sustentada pela observância do melhor interesse da criança e sugere que o tratamento de dados desses titulares seja realizado somente nas hipóteses restritivas do art. 11, hipóteses compatíveis, ainda, com a determinação do §3º do art. 14 (tratamento sem consentimento para a proteção da criança).
A ANPD entende que esse entendimento também apresenta limitações jurídicas e dificuldades de aplicação prática, pois quando a LGPD definiu, em seu art. 5º, inciso II, o conceito de dados pessoais sensíveis, não incluiu em seu rol os dados de crianças e adolescentes, mas apenas aqueles referentes à origem racial ou étnica, convicção religiosa, opinião política, filiação a sindicato ou a organização de caráter religioso, filosófico ou político, dado referente à saúde ou à vida sexual, dado genético ou biométrico, quando vinculado a uma pessoa natural.
Ou seja, a definição legal de dado sensível não leva em consideração o titular do dado ou a sua idade.
A ANPD também menciona que sejam consideradas situações concretas ao atender ao melhor interesse do menor, pois, dependendo das circunstâncias, o tratamento de dados salvaguarda os direitos da criança e do adolescente – e não o contrário.
A conclusão sobre segunda interpretação examinada, segundo a qual dados pessoais de crianças e adolescentes seriam equiparados a dados pessoais sensíveis é a de que:
entende-se que a tentativa de amenizar os riscos no tratamento de dados de crianças e adolescentes por meio do impedimento, a priori e em abstrato, do uso de determinadas hipóteses legais, tais como as de execução de contrato, de legítimo interesse e proteção ao crédito, poderá inviabilizar casos específicos de tratamento de dados pessoais que sejam realizados no melhor interesse da criança e do adolescente.
Interpretação nº 3 – possibilidade de aplicação das hipóteses legais previstas nos arts. 7º e 11 da LGPD
Segundo a terceira interpretação, o tratamento de dados pessoais de crianças e adolescentes pode ser realizado com amparo nas hipóteses legais previstas no arts. 7º e 11 da LGPD, observados os requisitos legais aplicáveis e o princípio do melhor interesse, nos termos do art. 14.
Conforme essa análise, o §1º do art. 14 da LGPD teria a finalidade de definir os contornos específicos do consentimento, obtido por pelo menos um dos pais ou responsável legal de forma específica e destacada, ainda que não abrangidos, no caso, dados pessoais sensíveis.
Daí decorre que o § 1º do art. 14 não vedou a aplicação das demais hipóteses legais, que não o consentimento, ao tratamento de dados pessoais de crianças. Entendimento semelhante foi estabelecido em Enunciado aprovado na IX Jornada de Direito Civil, promovida pelo Conselho da Justiça Federal, reconhecendo que “o art. 14 da LGPD não exclui a aplicação das demais bases legais, se cabíveis, observado o melhor interesse da criança”.
Como em determinadas ocasiões o tratamento de dados pessoais de crianças e adolescentes com base no consentimento pode contrariar o seu melhor interesse, a regra específica estabelecida no §1º do art. 14 seria interpretada em harmonia com a regra geral prevista no caput do mesmo artigo. O que significa: o consentimento para o tratamento de dados pessoais de crianças poderá ser utilizado, sempre de forma específica e em destaque, conferido por pelo menos um dos pais ou responsável legal, desde que essa seja a hipótese legal mais apropriada ao caso concreto e de acordo com o melhor interesse da criança.
Para a ANPD, o disposto no §3º do art. 14 reforça essa leitura, pois autoriza a coleta de dados pessoais de crianças sem o consentimento para contatar os pais ou o responsável e para a proteção da criança. Mais uma vez, esta segunda hipótese deve ser interpretada em harmonia com a regra geral estabelecida no caput do art. 14, segundo a qual o tratamento de dados pessoais deve ser realizado no melhor interesse da criança.
A terceira interpretação é a mais bem aceita pela Autoridade de Dados, pois, no seu entendimento, não apresenta as mesmas limitações jurídicas e dificuldades de aplicação prática identificadas nas duas primeiras interpretações analisadas.
A justificativa é a de que, de um lado, está estruturada sobre a garantia do melhor interesse, princípio que deve ser observado em todos os tratamentos de dados de crianças e adolescentes, em conformidade com a regra geral estabelecida no caput do art. 14 da LGPD. E, de outro, considera que, dependendo do caso concreto, o consentimento pode não ser a hipótese legal mais adequada para assegurar a proteção dos interesses de crianças e adolescentes, conforme reconhece e autoriza o próprio §3º do art. 14 ao prever que a coleta de dados poderá ser realizada sem consentimento dos pais ou responsáveis quando for necessário para a proteção da criança.
Entende-se, pois, pela possibilidade de tratamento de dados pessoais de crianças e adolescentes com base nas hipóteses previstas nos arts. 7º e 11, desde que observado o princípio do melhor interesse, conforme previsto no art. 14 da Lei.
Estudo técnico/Enunciado
Como mencionamos, por ora reproduzimos o estudo técnico realizado pela ANPD, órgão central de interpretação da LGPD e que possui competência para deliberar, na esfera administrativa e em caráter terminativo, sobre a interpretação da Lei.
Entre os mecanismos disponíveis para o exercício dessa competência, a ANPD também pode editar enunciado expressando sua decisão quanto à interpretação da legislação de proteção de dados pessoais e fixando, portanto, entendimento sobre matérias de sua competência, com efeito vinculativo.
Neste caso em questão, a ANPD sintetizou sua interpretação sobre a matéria e sugeriu de antemão a seguinte redação de enunciado:
“O tratamento de dados pessoais de crianças e adolescentes poderá ser realizado com base nas hipóteses legais previstas no art. 7º ou, no caso de dados sensíveis, no art. 11 da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), desde que observado o seu melhor interesse, a ser avaliado no caso concreto, nos termos do caput do art. 14 da Lei.”
No dia 08 de setembro o estudo foi disponibilizado publicamente e foi aberta a tomada de subsídios sobre hipóteses de tratamento de dados pessoais de crianças e adolescentes, que ficará aberta para contribuições até o dia 07/10 a fim de ouvir os diferentes interessados no tema e considerar os diversos posicionamentos na sua tomada de decisão.
As contribuições devem ser encaminhadas por meio da Plataforma Participa Mais Brasil.
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