No dia 27 de setembro de 2022 o ministro Gilmar Mendes, em despacho muito fundamentado, decidiu marcar uma audiência pública para a ADC nº 81, que trata da constitucionalidade dos chamamentos públicos para autorização de cursos de Medicina.
A data prevista é 17 de outubro e as questões a serem enfrentadas e esclarecidas são:
(i) oferta de médicos no Brasil: sua evolução e distribuição no território nacional;
(ii) recursos essenciais para o funcionamento adequado de cursos de graduação em Medicina;
(iii) impacto da política pública estruturada pelo art. 3º da Lei 12.871/2013, especialmente do requisito prévio do chamamento público na distribuição regional de médicos e na formação médica brasileira;
(iv) dinâmica do mercado de cursos de graduação em Medicina: estrutura concorrencial e barreiras à entrada;
(v) atuação da Advocacia-Geral da União no enfrentamento de provimentos liminares (em sentido amplo) no âmbito temático em exame.
De acordo com o despacho, o caso demanda
“Uma interpretação que se ancora no pressuposto de que o processo de conhecimento ‘envolve a investigação integrada de elementos fáticos e jurídicos’”. (MENDES, Gilmar Ferreira. MARTINS, Ives Gandra da Silva. Controle Concentrado de Constitucionalidade – Comentários à Lei n. 9.868/1999. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 272).
Com a audiência pública será possível uma “revisão aprofundada dos fatos e prognoses que motivaram a implementação dessa política pública pelos Poderes Executivo e Legislativo” (grifos no original). Ainda nos dizeres do Relator, será possível um controle de resultado que recai “sobre o que foi constatado” e não sobre como foi a conduta do legislador.
Essa análise de fatos poderá ser, em suma, contrastada com o prognóstico feito pelo legislador, um controle incomum, mas firmemente fundamentado na experiência internacional. Nesse sentido, em artigo influente do próprio Ministro Gilmar Mendes foi relatado o seguinte caso:
Clássico exemplo de um controle do prognóstico do legislador pela Corte Constitucional consta do chamado "Apotheken-Urteil ", no qual se discutiu a legitimidade de lei do Estado da Baviera que condicionava a instalação de novas farmácias a uma especial permissão da autoridade administrativa.
[...] Após rigoroso exame sobre o prognóstico do legislador, concluiu a Corte:
a) que a liberdade de instalação de farmácias, em outros países com o mesmo standard civilizatório da Alemanha, não levou a uma efetiva ameaça da saúde pública (examinou-se em particular a situação existente na Suíça com base nos laudos apresentados pelos peritos designados);
b) que a liberdade de instalação de farmácias não levaria, necessariamente, a uma multiplicação ilimitada desses estabelecimentos, porquanto a decisão sobre a sua instalação ou não, tendo em vista os elevados custos financeiros, passa por inevitáveis considerações de ordem econômica e análise de mercado;
[...] Assim, embora ressaltando que não poderia decidir sobre o sistema jurídico mais adequado para regular a matéria, concluiu o Tribunal que o modelo adotado pelo Estado da Baviera revelava-se incompatível com a liberdade de exercício profissional estabelecida na Lei Fundamental. (MENDES, Gilmar Ferreira. Controle de constitucionalidade: hermenêutica constitucional e revisão de fatos e prognoses legislativos pelo órgão judicial. Revista Jurídica da Presidência, v. 1, n. 8, 2000. P. 8, grifamos)
No primeiro caso, como visto, foi afastado o argumento de “multiplicação ilimitada de estabelecimento” e no segundo de “concorrência desenfreada entre profissionais”; destacado esse motivo, é possível observar que ambos se assemelham à ADC nº 81, que na inicial argui:
Como visto, nos dois casos acima, coincidentemente relativos à restrição de atividades econômicas em face de suposto interesse público ligado a saúde, o Tribunal Constitucional Alemão analisou os fatos que mostravam o quão errôneo era o prognóstico no qual se embasou a política pública.
Esse apontamento é importante porque a ADC nº 81 discute uma norma partindo da interpretação de que é necessário restringir a criação de cursos de Medicina apenas aos casos de chamamentos públicos. Segundo enredo na petição inicial, esse seria um meio de proteger a saúde pública, pois esse tipo de licitação, direcionada a cidades específicas, seria uma solução para reduzir as desigualdades na distribuição de médicos e para controlar a expansão do número de médicos.
Mas o que sabemos sobre os resultados dos chamamentos públicos? Existem estudos, mas em sua maioria os trabalhos fazem uma análise ampla da situação de desigualdade de atendimento médico ao longo do tempo, sem isolar especificamente a política de chamamentos públicos.
Há inclusive um estudo detalhado que afirma existir a “...necessidade de mensuração do impacto das escolas médicas abertas no interior na distribuição e fixação de médicos...”, considerando o risco quanto a disponibilidade de corpo docente e campos de prática. Tal questão é importante, pois a interiorização é o foco principal da política de chamamentos públicos do Mais Médicos. Esse estudo, por exemplo, conclui que seria preciso “...discutir novos modelos e abrangência de regulação, avaliação e fiscalização para garantias de qualidade do ensino médico no Brasil...”, indicando problemas na política regulatória da Lei 12.871/2913.
Estudos assim são importantes, porém o dado mais concreto talvez seja a constatação de que o próprio Poder Executivo suspendeu os chamamentos em 2018 para promover uma “...reorientação da formação médica em cursos de graduação em Medicina...” (Art. 2º, da Portaria 328/2018).
Ora, se foi necessário “reorientar a formação” após 5 anos de aplicação da Lei do Mais Médicos, suspendendo unicamente os chamamentos e aumentos de vagas (Art. 1º, da Portaria 328/2018), a estratégia de distribuição de vagas por licitação não gerou bons efeitos no médio prazo.
Na realidade, a portaria que impôs moratória é um documento dúbio, pois pode tanto refletir uma opinião negativa e embasada do Poder Público quanto expor a permeabilidade dele às pressões feitas por entidades de classe e instituições já ofertantes de cursos de Medicina. Assim, pode-se dizer que a política de chamamentos públicos não demonstrou ser confiável nem isenta de captura regulatória.
Na experiência internacional, conforme artigo que publicamos, a indicação de potenciais resultados negativos também existe. O caso da falta de médicos em Portugal sob como aviso dos potenciais efeitos negativos de uma política de contenção de vagas em cursos de Medicina.
Enfim, há uma alvissareira notícia quanto ao processo sobre autorização de cursos de Medicina no STF (ADC nº 81): haverá uma audiência pública para ouvir técnicos e autoridades que certamente contribuirão para o julgamento. E no texto que marcou a audiência dá indicações claras de que, depois, nem mesmo os prognósticos feitos pelo legislador ficaram isentos de análises. Agora, a nosso ver, não basta mais apenas dizer que o chamamento público do Mais Médicos é uma boa política pública. Será necessário provar isso e, mais, justificar até mesmo o motivo da ação judicial não mostrar preocupação com a suspensão dessa política.
Mais do que apenas parecer bom, o chamamento público terá de se justificar como efetivo e terá de encarar as externalidades negativas que gera.
Leia mais:
Autorização de Medicina, a constitucionalidade da Lei 12871/13 e primeiros movimentos da ação no STF
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Olá, Jakobs! interessante o tema do debate que propõe sobre a aprovação tácita de cursos ead, eu tive sucesso em uma ação no mês passado, com o deferimento de uma liminar sobre o assunto. O MEC sempre à margem da legislação.
Abraços.
Kailo Resende