A ação direta de constitucionalidade nº 81, de 2022, busca evitar que o Poder Judiciário dê seguimento às ações propostas na justiça federal com o objetivo de permitir o protocolo de novos pedidos de autorização de cursos de Medicina.
Esta é uma demanda incomum e complexa que em primeiro plano tenta demonstrar que o chamamento público, uma espécie de licitação criada pela Lei do Programa Mais Médicos (Lei 12.871/2013), é o único meio de abrir novos cursos de Medicina. Tenta fazer isso provando que a livre iniciativa é uma forma de regulação, uma espécie de sistema libertário, sem regras e sem controle de qualidade.
Todavia, a livre iniciativa não é uma forma de regulação. É um momento de escolha que precede o controle estatal, por isso é livre e por isso é “iniciativa”.
O texto do Art. 209 da Constituição indica isso quando prevê: “O ensino é livre à iniciativa privada, atendidas as seguintes condições: I - cumprimento das normas gerais da educação nacional; II - autorização e avaliação de qualidade pelo Poder Público”. De acordo com o texto, o cumprimento das regras gerais, a autorização e a avaliação são condições para a livre iniciativa, são requisitos; não a são a iniciativa nem a substituem.
A “livre iniciativa privada”, neste caso, é um misto do exercício de escolhas baseadas em interesse privado (liberdade) e de direito de petição (iniciativa). As escolhas sobre a estrutura, o tempo e o local do curso são o planejamento privado que também é protegido pelo Art. 174 da Constituição. Tais escolhas devem ser livres, segundo a norma fundamental de 1988. Paulatinamente, feitas as escolhas e moldado o curso, as Instituições de Ensino podem ter a iniciativa de propor sua oferta. Aí surge a iniciativa como Direito de Petição.
Para que essas escolhas se tornem efetivas, contudo, não basta o protocolo e o cumprimento das regras gerais da educação, é necessária a abertura de um processo de autorização - tecnicamente denominado “regulação”, conforme Art. 1º, § 1º, do Decreto 9.235/2017 - e é preciso sujeitar-se à avaliação. Existem, portanto, três fases distintas para a validar um curso superior: a iniciativa, a regulação e a avaliação, que pode estar contida na fase regulatória ou pode ser periódica. A primeira fase é livre e as demais são o controle estatal que se segue a essa liberdade.
O chamamento, por outro lado, une todas essas etapas. É iniciativa, porque decorre de um edital publicado pela Administração Pública e porque o planejamento prévio, incluindo escolha de estrutura, tempo e local, é feito bojo do processo licitatório. Também é regulação e avaliação, na medida em que, depois da publicação do edital e da participação dos interessados, inicia-se um procedimento simplificado de apuração das condições financeiras e a avaliação de qualidade da oferta de um serviço.
Substituir o processo de autorização e de avaliação não seria uma falha grave se isso fosse tecnicamente possível, mas ao supostamente substituir a livre iniciativa privada o chamamento tornaria inócuo o Art. 209 da Constituição. O planejamento público e o edital suprimiriam a livre iniciativa privada no ensino e, nesse sentido, tornam letra morta a liberdade constitucional
É por isso que ao tratar o chamamento público como substituto da iniciativa privada o MEC provoca uma discussão sobre sua constitucionalidade.
Frise-se, nesse sentido, que a Lei do Programa Mais Médicos tomou o cuidado de não afirmar que o chamamento substitui a livre iniciativa ou o procedimento dela decorrente, também não afirmou que o MEC deveria parar de receber pedidos de autorização de cursos de Medicina. Portanto, é a interpretação dada ao artigo que se mostra restritiva, é ela que trata o chamamento como substituto da livre iniciativa e cria o debate constitucional.
Essa discussão não precisaria existir. O Programa Mais Médicos e o chamamento público para cursos em localidades de grande demanda social é uma política pública muito importante, relevante mesmo, Tão relevante que sequer deveria ter sido suspensa pela União em 2018.
Como política pública de redução das desigualdades não deve ser considerada inconstitucional. Tal como a política de cotas por raça ou deficiência tem um papel complementar essencial. Todavia, da mesma forma como foram implantadas as cotas, a política inserta no Programa Mais Médicos não deveria bloquear outros cidadãos interessados. A comparação não é perfeita, pois no concurso público o planejamento é estatal, mas a convivência entre política pública e via regular de acesso ilustra bem a tese aqui exposta para cursos de Medicina.
Quando o MEC opta por criar atos normativos e por defender em juízo a substituição da livre iniciativa pelo chamamento, age contra a legislação que diz valorizar e proteger. É como se o Poder Judiciário analisasse o estatuto da pessoa com deficiência e criasse, por portaria, um bloqueio nos concursos. A intenção não seria ruim, mas poderia existir uma redução de competitividade e, principalmente, a frustração dos legítimos interesses dos demais cidadãos. Nos dois casos é a interpretação e não a lei em si, que não se adequa ao texto constitucional. É a Administração Pública, no caso real e no hipotético, que cria a situação de inconstitucionalidade.
Necessário acrescentar que a inconstitucionalidade da interpretação do MEC não decorre apenas da frustração da iniciativa privada. Quando ele opta por fechar seu protocolo regular de cursos de Medicina e ao mesmo tempo regula uma política no sentido de só criar cursos em novos municípios, cria uma barreira regulatória em face da concorrência. Quem já oferece curso de Medicina em uma cidade passa a ter certeza que não terá um novo ingressante no mercado; e quem vence um chamamento público ganha um monopólio no município selecionado pelo Ministério.
Essas circunstâncias foram agravadas em 2018, quando uma portaria do MEC suspendeu novos editais. A partir daquele ano sequer seria possível falar em ingressantes no mercado de educação médica durante 5 anos.
Tudo isso, repita-se, ocorre porque a União entende que hoje só existe uma via para criar novos cursos de Medicina. Nesse sentido, a inconstitucionalidade decorrente da supressão da livre iniciativa e dos prejuízos à livre concorrência, não está na lei. A Lei 12.871/2013, por si só, não parece ser inconstitucional.
Em 2015 o TCU afirmou o mesmo e mais recentemente, em 18 de julho de 2022, o Senado Federal deu força a essa forma de analisar o caso. Nesse sentido, em suas informações na ADC nº 81, o Senado Federal afirmou que:
29. Por essa razão, é constitucional a dinâmica do chamamento público como pré-condição para a autorização de abertura de cursos de medicina – e de outros cursos de saúde, como expressamente autorizado em lei, em plena observância do que consta do art. 170, parágrafo único, in fine, da Constituição da República.
30. Aqui, impõe-se um caveat: a presente manifestação não trata, nem poderia fazê-lo, do eventual cotejo entre as finalidades da norma legal, os limites dados pelo texto constitucional e a concreta e específica atuação do Ministério da Educação, haja vista o quadro atual, de suspensão de novos processos de chamamento público, notadamente em vista da Portaria MEC n. 328/2018, que suspendeu novas aberturas de cursos por cinco anos.
31. Essa é uma questão estranha à problemática da constitucionalidade da lei e, portanto, não deve ser discutida pelo Senado Federal neste processo.
Como visto, é possível defender a constitucionalidade da Lei e manter os olhos abertos para abusividades na sua aplicação. Esta informação foi a segunda juntada ao processo judicial - a primeira foi da Câmara dos Deputados, com conteúdo bastante genérico -, mas é a primeira manifestação do Estado que remete a uma possível discussão interna quanto a “concreta e específica atuação do Ministério da Educação” e sobre as “finalidades da norma legal, os limites dados pelo texto constitucional”.
Esse primeiro argumento novo é importante para quem defende uma interpretação constitucionalmente adequada da Lei 12.871/2013.
Contudo, existe ainda uma grande novidade. Há uma manifestação no final da petição com relação ao amplíssimo pedido cautelar:
34. Entende-se, data venia, que a presente ação não possa ser conhecida para suspender eventuais decisões judiciais que não tenham por objeto específico a inconstitucionalidade do art. 3º, mas a eventual ilegalidade da atuação concreta do Ministério da Educação, por ser questão que desborda do conhecimento da presente ADC.
Essa texto mostra que o Senado entendeu bem a questão de fundo, tão bem que contribuiu para trazer à luz, em um único movimento, dois motivos até então pouco visíveis da ADC: a tentativa de usar uma ação como forma de restringir outras ações judiciais lícitas; e o viés que considerava isenta a conduta do MEC. Esse é um bom começo.
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