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Edgar Jacobs

O CNE está "on": A aprofundada e pertinente discussão sobre os cursos de medicina

“Desde o Direito Romano, ‘tempus regit actum’, ou seja, a licitude ou a consequência jurídica de qualquer ato deve ser aferida segundo a lei vigente no momento de sua prática. É essencial e indispensável que cada cidadão, ao agir ou decidir, sempre saiba, antecipadamente, quais serão as consequências de sua opção. Para isso servem as normas jurídicas: para permitir essa antevisão e assegurar que aquelas determinadas consequências irão perdurar ao longo do tempo.”[i] As palavras de Adilson de Abreu Dallari são muito precisas e pertinentes à recente discussão instaurada no Conselho Nacional de Educação (CNE).

Na primeira semana de dezembro, o CNE discutiu um tema sensível e atual a aplicação retroativa de normas a processos de autorização de cursos de medicina. Em uma sessão conduzida de forma brilhante, conselheiros analisaram votos que apresentaram abordagens distintas sobre o tema, com destaque para a Portaria SERES/MEC 531 e a Nota Técnica 81, ambas de dezembro de 2023. O caso analisado envolvia o indeferimento de um curso com base nesses documentos.

O primeiro voto, proferido em novembro, considerou ilegal a aplicação dos documentos do MEC a processos criados mais de um ano antes e questionou o vício de forma da Nota Técnica, que foi utilizada como se fosse ato normativo, mesmo sem essa natureza. Também apontou incompatibilidades com a Lei 12.871/2013 e com disposições do Sistema Único de Saúde (SUS). Em dezembro, o voto de vista, igualmente bem fundamentado, apresentou o chamado "direito de protocolo" como contraponto ao princípio da irretroatividade e fez uma análise detalhada sobre a regulamentação de normas de conteúdo indeterminado. O voto ainda dialogou com argumentos do MEC, defendendo normas revogadas e o uso do edital de chamamento como referência para pré-seleção de municípios.

Na reunião todos os conselheiros e conselheiras contribuíram. Houve um terceiro voto, que manteve o indeferimento, mas questionou o descumprimento das normas do SUS e propôs a aplicação dos critérios de necessidade social às regiões de saúde. Discussões sobre novos pedidos de vista também ocorreram e eles pareciam ser necessários mesmo. Além disso, houve intervenções pragmáticas, indicando que a aplicação das normas deve respeitar a legalidade e garantir a qualidade nos cursos autorizados.

Dentre tantos assuntos importantes, abordaremos aqui a discussão sobre a questão da retroatividade das normas e orientações do MEC, pois até o momento nem mesmo o Órgão tinha defendido que suas regras podem ter efeitos sobre processos em andamento.

Direito de protocolo ou segurança jurídica?

O "direito de protocolo", como apontado na reunião do CNE, é um conceito da área urbanística, que trata de direitos supostamente adquiridos com base no simples protocolo de pedidos, mesmo antes de os requisitos legais serem plenamente analisados. Entretanto, no contexto educacional, deve prevalecer a segurança jurídica. Porque, ao longo do processo regulatório as decisões parciais em cada fase configuram "situações consolidadas", protegidas pela Lei 9.784/1999 e pela Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), assim, não existe apenas um ato unilateral e burocrático. A cada fase é feita uma análise, por exemplo, documental ou de infraestrutura, e o Ministério da Educação confirma se o cumprimento das condições que impôs.

É por isso que o próprio MEC sempre reafirma que suas regras regulatórias não retroagem. Recentemente, a Nota Informativa 22/2023, sobre cursos de medicina, contemplou vários “…regimes jurídicos, a depender da sua natureza, origem ou data do protocolo”. Usando este entendimento, o MEC proferiu várias decisões que aplicam os “regimes jurídicos” de acordo com a data de entrada dos processos – mesmo tendo imposto, de forma surpreendente, a Portaria SERES/MEC 531/2023 e a Nota Técnica 81/2023 para outros casos.

A tese no CNE, porém, não é inovadora. Um ótimo artigo da relatora do voto de vista[ii], publicado em 2009, defendeu essa equiparação da regulação educacional com o “direito de protocolo”. Contudo, com o amadurecimento do direito regulatório da educação, é evidente que as autorizações de cursos de medicina não podem ser comparadas a licenças urbanísticas, nas quais as expectativas podem ser modificadas sem prejuízo à segurança jurídica. No âmbito educacional, decisões satisfatórias em cada etapa do processo tornam-se "fatos jurídicos perfeitos" protegidos pela confiança e pelo regime jurídico da época. Por isso, há anos a irretroatividade das normas de autorização de cursos é reconhecida pelo MEC, por inúmeras decisões do próprio CNE e pelo Poder Judiciário (ver processos AG 0044606-60.2014.4.01.0000 / GO e Reexnec 1014638-45.2017.4.01.3400, decididos pelo TRF1).

Constatar este consenso nos últimos anos é importante, pois os artigos 23 e 24, incluídos em 2019 na LINDB, afirmam que qualquer mudança normativa ou de orientação deve respeitar situações consolidadas e que eventuais alterações devem pautar-se em regimes de transição. Essas regras deveriam ter sido consideradas, pois assim a alteração de posicionamento do CNE seria mais justa.

Aliás, a Lei 13.874, também de 2019, reforçou o princípio da segurança jurídica ao estabelecer que os atos administrativos que tratam de “liberação da atividade econômica” devem observar os critérios de interpretação adotados em decisões anteriores análogas. Essa previsão vincula a Administração Pública ao tratamento isonômico de casos semelhantes. Porém, isso não foi considerado na discussão sobre a irretroatividade.

Há, portanto, no momento atual e na área educacional, um contexto de proteção da segurança jurídica bem diferente daquele em que se discutia o “Direito de Protocolo”, que, se considerados, acrescentariam elementos ao profícuo debate.

E agora? O que virá?

A discussão no CNE, ao contrário da postura até então adotada, sinaliza um avanço no debate jurídico sobre a política regulatória aplicada aos cursos de medicina. Se prevalecer a tese de que as regras podem ser retroativas – tal como ocorre nas regras urbanísticas – algumas autorizações e aumentos de vagas terão de ser revistas. Um desses casos se refere a uma Portaria que vigorou um único dia, o qual, coincidentemente, foi a data do protocolo de um pedido relacionado à medicina. Afinal, ficará bem estranho se a garantia desse regime jurídico de um único dia prevalecer, mas nos demais casos as normas e notas técnicas do MEC puderem ser retroativas. Além disso, a União terá de mudar a tese que defende no STF, pois lá afirma, de certa forma, que sua norma não retroage.

Enfim, mesmo com a vitória da tese da equiparação ao “Direito de Protocolo”, acatada por 8 dos 12 votos no CNE, a pluralidade de perspectivas apresentadas reforça a ideia de que as normas do MEC precisam ser discutidas. Como bem lembrou um dos conselheiros, a discussão já avançou no Poder Judiciário, que acata uma visão mais moderna e vigorosa de segurança jurídica. Isso indica que a decisão do CNE neste novo caso é só mais um passo, um julgamento que, como bem explicado pelo Presidente da Câmara de Educação Superior do CNE, tem força e peso dentro da competência que é atribuída ao Órgão.

Em resumo, o CNE está "on"! Dá gosto de ver e ouvir, além, é claro, de muita vontade de opinar. Afinal, é essa soma de opiniões, e não o debate sectário, que dá o tom da democracia.


[i] In. PEREIRA, Flávio Henrique Unes; ANASTASIA, Antonio Augusto Junho. Segurança jurídica e qualidade das decisões públicas. Desafios de uma sociedade democrática. Brasília: Senado Federal, 2015.

[ii] BUCCI, Maria Paula Dallari. O art. 209 da Constituição 20 anos depois: estratégias do poder executivo para a efetivação da diretriz da qualidade da educação superior. Fórum administrativo: direito público, Belo Horizonte, v. 9, n. 105, 2009.

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