Nenhuma área de conhecimento pode deixar de incorporar o ensino de tecnologia durante a graduação; isso é quase algo óbvio, visível em face do contexto em que vivemos.
Na área jurídica, a diretriz curricular de dezembro de 2018 trouxe o tema da tecnologia de forma genérica no perfil do egresso e na parte que trata do conteúdo de formação geral. Neste último tópico, constou que seria necessário o diálogo entre os fundamentos do Direito e: “…as demais expressões do conhecimento filosófico e humanístico, das ciências sociais e das novas tecnologias da informação…” (Art. 5º, I, da Resolução CNE/CES 05).
Porém, não foi incluído o conteúdo de informática, ciência da computação ou ciência de dados como necessário. Nesse sentido, é genérica ou meramente declaratória a menção feita à tecnologia.
Nos conteúdos técnico-jurídicos o tema apareceu somente como uma opção de ênfase em “Direito Cibernético” (Art. 5º, §3º, da Resolução CNE/CES 05). Algo que denotava um certo conservadorismo, que refletiu igualmente em temas como Direito Ambiental e do Consumidor. Naquele momento, os únicos conteúdos “novos” incluídos no rol obrigatório foram Direito Previdenciário e Formas Consensuais de Solução de Conflitos.
A relevância dos conteúdos tem um caráter subjetivo. Profissionais que já trabalhavam com direito e tecnologia, por exemplo, são mais sensíveis à limitação do conteúdo das diretrizes. Enquanto isso, há quem defende mais contenção para esperar a consolidação de novo ramo do direito e outros defendem que conteúdos obrigatórios sequer são condizentes com nossa Constituição, que consagra a liberdade de concepções pedagógicas (Art. 206). Dessa forma, é natural que não haja consenso sobre a necessidade de incluir temas relacionados a tecnologia e ao mundo digital nos projetos pedagógicos de cursos de Direito.
Na medicina, por exemplo, a “…compreensão e domínio das novas tecnologias da comunicação para acesso a base remota de dados…” já é tratada como conteúdo fundamental na Diretriz Nacional Curricular (DCN) contida na Resolução CNE/CES 03/2014.
A engenharia tem DCN de 2019 e traz o conteúdo de informática, além de diversas menções à tecnologia com certo detalhamento. Em uma das mais recentes propostas de DCN, o Parecer CNE/CES 438/2020, sobre o Curso de Administração, não existem conteúdos obrigatórios, mas a tecnologia é valorizada como elemento indispensável para os administradores:
“Uma vez que as escolas ainda estão preocupadas com conteúdos ligados a uma forma de produção ligada à Revolução Industrial 3.0, e ensinam competências não necessariamente ligadas à conversa contínua entre homens e máquinas, o administrador em formação fica vulnerável a estas transformações. Por isso, é preciso empoderar o mesmo com ferramentas mais modernas”.
Nesse novo contexto, foi aprovado em dezembro o Parecer CNE/CES 757/2020. Este documento, do Conselho Nacional de Educação (CNE), surgiu de um pedido do Ministério da Justiça e Segurança Pública no sentido de incluir a disciplina “Direito Financeiro” nas Diretrizes. O Conselho recebeu o pedido e criou uma comissão, que mesmo ressalvando que o foco em competências e, não, em conteúdo, aprovou a mudança e complementou:
“Nessa ocasião, igualmente, ampliamos o escopo das proposições no artigo 5º da referida DCN, no sentido de fortalecer os esforços referentes ao letramento digital e às práticas de comunicação e informação, que expressam as tecnologias educacionais e que devem permear a formação, inclusive presencial, no sentido de adotar as competências vinculadas a essas mediações, especialmente em práticas e interações remotas relacionadas ao aprendizado”.
Ironicamente, um pedido um tanto quanto voltado ao tradicionalismo acabou levando o CNE a um importante avanço. Afinal, a partir dos dizeres acima, o Parecer modificou o Art. 5º, da Resolução CNE/CES 05/2018 para incluir o Direito Digital entre os conteúdos técnico-jurídicos e para incluir no final do dispositivo que trata da formação prático-profissional (Art. 5º, III) uma expressa necessidade de “…abranger estudos referentes ao letramento digital, práticas remotas mediadas por tecnologias de informação e comunicação”.
Tal como no caso do parecer sobre Administração, o documento do Direito ainda carece de homologação Ministerial. Mas trata-se de uma importante indicação de rumo.
A tecnologia é absolutamente indispensável para os profissionais do Direito hoje e no futuro. Softwares de gestão e de inteligência artificial são apenas a parte mais avançada de pequenas mudanças já consolidadas, como a atuação em processos eletrônicos e o uso de processadores de texto, planilhas, programas de apresentação ou design.
Em 2019, o Instituto Olhar fez uma pesquisa com profissionais do Direito que estão em escritórios de médio e grande porte, lawtechs e empresas com atuação internacional, a pedido da SKEMA Brasil, instituição global que pretende criar um curso de Direito em Belo Horizonte. Na pesquisa, o “conhecimento em tecnologia” foi indicado como a principal competência – 28% das respostas – para um advogado se destacar nos próximos 5 ou 10 anos, enquanto o conhecimento técnico-jurídico apareceu como o terceiro, com 11%. Quando a pergunta foi sobre os futuros juízes e promotores esses indicadores foram equivalentes.
No mesmo estudo, os respondentes indicaram uma nota média de 3,4, em uma escala de 5 pontos, no quesito “nível de formação acadêmica” para o uso de meios extrajudiciais de solução e conflitos, ao passo que apontaram média de apenas 2,2 para o ensino de fundamentos para utilização de tecnologia aplicada ao Direito. Nesse sentido, foi revelada uma lacuna na formação jurídica que coincide com a demanda por conhecimento tecnológico exposta pelo mercado.
Este último achado foi referendado por pergunta sobre as “Demandas não supridas pelos cursos de Direito atuais”. A principal demanda não suprida novamente foi a tecnologia, com 37% das indicações, à frente, por exemplo, do conteúdo prático, com 11%. Enfim, a pesquisa, que teve caráter nacional, justificaria bem a inclusão do letramento digital e do Direito Digital nas DCN do curso.
Na mesma direção, pesquisa da consultoria Mackinsey & Company nos Estados Unidos e na Europa mostrou que entre 2016 e 2030 o número de horas trabalhadas em atividades que exigem habilidades cognitivas avançadas crescerá 8%, enquanto as que exigem habilidades tecnológicas crescerá 55%. Esse crescimento desproporcional, que poderia até ser inferido como notório, certamente afeta a área do Direito. Sendo assim, o estudo internacional reitera os achados da pesquisa brasileira.
Ambos os estudos também tratam da importância de habilidades socioemocionais e comportamentais, mas expõem com maior destaque a premência de habilidades relacionadas à tecnologia. Daí a importância da mudança nas DCN dos cursos jurídicos.
Para implementar as alterações, ainda é preciso discutir alguns pontos como a ambiguidade gerada pelo uso das expressões “direito cibernético” e “direito digital” na mesma norma e a adoção do termo “letramento digital”, que se refere a um conhecimento muito básico e tem mais de uma definição conforme referencias da Wikipédia. Contudo, esse debate pode ser feito simultaneamente à adoção da nova norma, que precisa ser implantada o mais rápido possível.
E não bastará que os cursos descrevam e ensinem os estudantes de Direito a usar ferramentas tecnológicas. É indispensável estudar técnicas para a regulação dos serviços e dos produtos, incluindo nos currículos até mesmo os dilemas éticos suscitados pelas novas tecnologias.
Enfim, conhecer, saber regular e questionar as relações sociais impregnadas de tecnologia agora é parte básica da educação jurídica. Sendo assim, é possível dizer que o futuro do Direito nas escolas jurídicas começa agora, ou, quem sabe, começou faz tempo, mas só agora, depois da aceleração gerada pela crise sanitária, os órgãos reguladores transformaram essa união – Direito e Tecnologia – em norma.
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