Por Edgar Jacobs
O Fundo de Financiamento Estudantil (Fies) é um programa que foi muito bem-sucedido para viabilizar o acesso ao ensino superior, mas desde 2017 tornou-se um tema jurídico e financeiro complexo que envolve normas discutíveis do ponto de vista legal.
Segundo seu site oficial, ele é “uma ação do Ministério da Educação que financia cursos superiores não gratuitos com avaliação positiva”, fundada na Lei 10.260/2001. Tecnicamente, o programa cria uma relação tripartite entre a Caixa Econômica Federal (CEF), a Mantenedora de Ensino e o Estudante, garantida por um fundo de natureza privada, denominado Fundo Garantidor do Fies (FG-Fies).
Para equilibrar o programa, especialmente em virtude do volume de empréstimos e da perspectiva de um elevado nível inadimplência, várias modificações foram feitas no projeto original, criando modalidades diferentes e valorizando a ideia de que, em certos casos, a garantia contra os riscos financeiros precisava ser ampliada. Nesse contexto foi criado, em 2018, o FG-Fies. O fundo conta com aportes da União e das mantenedoras, sendo que esses últimos foram originalmente de 13% dos encargos educacionais devidos pelos estudantes (primeiro ano) e em seguida de 10% a 25% (do segundo ao quinto ano). Agora, algumas adesões entraram no sexto ano e o aporte das mantenedoras, também denominado honra, passou a ser calculado pela “a razão entre o valor apurado para pagamento da honra e o valor mensal esperado do pagamento pelo financiado, referentes ao ano anterior, da carteira da entidade mantenedora”, conforme fórmula prevista no Art. 3º, da Resolução CGFIES 12/2017 (modificado pela Resolução CGFIES 20/2018).
Na prática, muitos aportes se tornaram superiores a 40% do valor dos encargos educacionais e as mantenedoras passaram, de um mês para outro, a receber apenas 60% do que seria devido pelos estudantes. Diante dessa situação, há uma grande perplexidade e sentimento de desequilíbrio econômico-financeiro instaurado entre as Instituições de Ensino Superior que participam do Fies.
Essa perplexidade se justifica, pois o inesperado desequilíbrio realmente ocorreu. Apenas a título de perspectiva histórica, vale dizer que a Lei, logo após prever o critério de aporte para o sexto ano e seguintes, afirma que para o período: “…a razão de que trata o inciso III do § 11 deste artigo não poderá ser inferior a 10% (dez por cento)” (Art. 4º, § 12, da Lei 10.260/2001), ou seja, a própria norma previa que o aporte poderia ser menor que um décimo das mensalidades. Porém, o que se vê hoje é uma realidade diferente.
Há uma quebra de expectativa e a disparidade entre o real o esperado não é pequena - 10% ou menos com possibilidade em 2017 e mais 40% como realidade em 2023. Essa é situação abrangida no direito pela denominada teoria da imprevisão, seja porque, de fato, deve existir o peso do “caso fortuito” caracterizado pela pandemia de COVID-19, com nefastos efeitos econômicos e sociais; seja por existir uma situação previsível (modificação do valor da honra) de consequência incalculável.
Nos dois casos, o contrato, caso considerado um contrato administrativo, pode ser alterado. Nesse sentido, o Art. 124, II, “d”, da Lei 14.133/2021, prevê que pode haver alteração acordada quando “…para restabelecer o equilíbrio econômico-financeiro inicial do contrato em caso de força maior, caso fortuito ou fato do príncipe ou em decorrência de fatos imprevisíveis ou previsíveis de consequências incalculáveis…”. Esta regra, que já existia na lei anterior de licitações, foi efetivamente usada em casos relativos a variações financeiras incalculáveis (ex. STJ - REsp: 1433434 DF 2011/0163895-7, Relator: Ministro SÉRGIO KUKINA, Data de Julgamento: 20/02/2018)
Se a relação for considerada de natureza cível, por se tratar de fundo privado, também há solução jurídica. Nesse caso, a saída também pode passar pela denominada “teria da imprevisão”, genericamente, ou por uma discussão sobre “onerosidade excessiva”. Sobre esse último caminho, o Código Civil Brasileiro, diz que os contratos excessivamente onerosos podem ser desfeitos por resolução e que essa medida extrema pode ser evitada se a parte demandada “…modificar eqüitativamente as condições do contrato” (Art. 479).
Sobre a teoria da imprevisão aplicada a contratos de Fies em virtude dos efeitos da pandemia há decisão de Tribunal Federal (TRF-4. AG: 50265162220204040000 5026516-22.2020.4.04.0000, 2020) e sobre onerosidade excessiva de aportes a um fundo existe decisão de Tribunal Estadual (TJ-PR. APL: 00081644320168160075 PR 0008164-43.2016.8.16.0075, 2019). Portanto, ambas as teses são, em princípio, viáveis.
Esse tipo de solução jurídica é reforçada pela Lei de Liberdade Econômica que reconhece a “vulnerabilidade do particular perante o Estado” (Art. 2º, IV) e afirma que ele deve “…gozar de presunção de boa-fé nos atos praticados no exercício da atividade econômica…” (Art. 4º, V). As duas diretrizes são importantes, pois pode haver um contraponto entre a atuação das mantenedoras e a da CEF nesse caso. A CEF, um agente público, era responsável por fazer as cobranças de dívidas do Fies e a variável que mais afetou o crescimento do valor do aporte das mantenedoras foi um suposto aumento da inadimplência dos estudantes.
E diz-se aumento suposto de inadimplência porque as informações detalhadas não estão disponíveis. Apesar de existir uma fórmula clara na resolução do CGFIES/FNDE, os dados individualizados, usados para chegar ao novo valor de aporte, não foram divulgados.
Em virtude dessa falta de transparência, inclusive, ainda existe dúvida em relação à conduta da CEF para cobrar e evitar a inadimplência. A teoria do duty mitigate the loss (dever de mitigar o prejuízo) impõe ao credor agir sempre com intuito de reduzir suas perdas, neste no caso concreto precisa ser apurado se a CEF fez isso. Apesar da respeitável tradição da CAIXA, a certeza de que haveria um aumento do aporte ao fundo garantidor e a probabilidade de atuação política abririam, em tese, espaço para uma conduta leniente.
A apuração dos dados, portanto, ainda pode abrir um debate jurídico sobre a boa-fé objetiva de quem administra os contratos e deve evitar a inadimplência. E este problema tornaria ainda mais frágil a defesa do novo volume de aportes ao fundo garantidor.
Em suma, a redução dos valores efetivamente pagos pelo Fies às mantenedoras gera bastante controvérsia jurídica e, diante do contexto descrito acima, a CEF, o FNDE e a União deveriam antecipar o problema e evitar a onerosidade excessiva dos contratos. O Fies, como política pública, precisa disso.
Enfim, as mantenedoras agora devem tomar consciência de seus direitos e demandar uma mudança no Programa. Ao mesmo tempo, devem tomar as medidas necessárias para evitar que se tornem as únicas responsáveis por todos os riscos do Fies.
Tem mais dúvidas sobre o FIES? Entre em contato: contato@jacobsmonteiro.com.br
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