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O ensino médico e a premissa da qualidade

Um critério muito utilizado para avaliar a oferta de vagas em cursos de medicina é a proporção de 1 vaga para cada 5 leitos hospitalares disponíveis para a prática. O foco seria garantir a prática médica para fomentar a qualidade dos profissionais que serão formados. 


O critério é excelente, mas peca por negligenciar a diversidade de formas de aprendizagem e de espaços de prática médica. Um bom exemplo da limitação de opções é a recente habilitação de um grande hospital para a abertura de cursos de medicina em São Paulo. O Hospital merecidamente ganhou o direito de requerer autorização do curso, mas o que chama a atenção é que isto ocorreu depois do MEC negar nas últimas semanas mais de 45 propostas de cursos de medicina em todas as regiões do Brasil, muitas vezes fundamentando sua negativa no fato de que cidades com muitos médicos não precisam de cursos de medicina. 


O problema da "hospitalização".


O foco nos leitos hospitalares como referência para a prática médica foi inclusive discutido em recente parecer do CNE, que afirmou: 


Esta pode ser uma boa oportunidade para que este Conselho provoque uma reflexão acerca deste critério fundante de relacionar apenas leitos hospitalares ao número de alunos para a definição do número de vagas. Ele revela uma dependência excessiva de hospitais para a prestação de serviços de saúde, trazendo de volta o debate que se desenvolve em torno da “desospitalização” dos cursos de formação médica. 
Os ambientes de aprendizagem precisam ser diversificados. Se vamos valorizar a prevenção em saúde e a medicina da família, nossos alunos precisam conhecer e atuar nos consultórios e no cotidiano da população que frequenta as Unidades Básicas de Saúde (UBS), bem como as Unidades de Pronto Atendimento (UPA). Seriam bons tutores os profissionais que enfrentam mazelas próprias e regionalizadas e que humanizam o atendimento num sistema focado em atenção primária. Precisamos ampliar as configurações de saúde que colocamos à serviço da formação médica. (Parecer CNE/CES 326/2024) 

Realmente, existe uma multiplicidade de espaços de aprendizagem prática para medicina. Todos eles deveriam ser valorizados quando os órgãos reguladores avaliassem um curso de medicina. Nesse sentido, as diretrizes curriculares de medicina não restringem nem vinculam a prática aos leitos hospitalares.  


Na verdade, a palavra “leito” nem aparece nas DCN de medicina, que sugerem para estes cursos “utilizar diferentes cenários de ensino-aprendizagem, em especial as unidades de saúde dos três níveis de atenção pertencentes ao SUS, permitindo ao aluno conhecer e vivenciar as políticas de saúde em situações variadas de vida, de organização da prática e do trabalho em equipe multiprofissional”. As diretrizes valorizam o SUS, tradicionalmente relacionado com unidades hospitalares, mas destacam os diferentes cenários de ensino-aprendizagem e até o trabalho em equipe multiprofissional demonstrando abertura de uma medicina além dos hospitais. 


Nesse contexto, a habilitação de uma unidade hospitalar em detrimento de instituições de ensino superior, mesmo em se tratando de uma das melhores, senão a melhor unidade brasileira, revela um problema sistêmico. Um sistema que funciona, aparentemente, com base em uma escolha política: evitar ao máximo novos cursos de Instituições de Ensino Superior privadas. 


Unidades hospitalares na política do Mais Médicos.


Unidades hospitalares são um dos focos da Lei do Mais Médicos, que prevê, no Art. 3º, § 5º, a criação de cursos nestes espaços. O próprio MEC regulamentou esta via de acesso em abril de 2023, por meio da Portaria 650.


Porém, mesmo nesta modalidade observa-se um viés na regulamentação. Sem qualquer base na Lei foi incluída no Edital 05/2024 uma previsão exagerada de 400 SUS*, no mínimo. Essa condição, por si só, exclui muitas redes e espaços de aprendizagem. Na prática, independentemente da existência de um grande volume de leitos e servicos de saúde privados, o MEC condiciona a habilitação para curso de medicina apenas aos leitos SUS. 


Novamente é necessária a ressalva: não há nada contra cursos de medicina que favoreçam ou fomentem atividades dos seus egressos no SUS (esta, aliás, é a regra nas DCN), mas seria o “leito SUS” o único espaço de treinamento relevante? Alguém que treinasse apenas em leitos do sistema único seria necessariamente um profissional melhor que um estudante que conhecesse ambientes e modelos de trabalho diversificados? Entendemos que não.


Pois bem, a premissa política parece agora mais clara: há uma aversão ao que é privado e um pseudovalorização do SUS. Valorização falsa porque o SUS precisa de médicos bem treinados e de muitos médicos, não de pessoas que conheçam apenas os leitos hospitalares da rede saúde pública. 


A qualidade deveria ser a premissa principal.


O ideal seria uma política pública com a premissa real de qualidade de ensino, com oferta de cursos em instituições públicas ou privadas, mas sempre em ambientes diversificados. Sobre a importância da qualidade como premissa para abertura de novos cursos de medicina, recente artigo da Conselheira do CNE, Ludhmilla Hajjar, concluiu: 


A abertura indiscriminada de faculdades de medicina no Brasil representa um desafio urgente para a saúde pública e para o sistema educacional. Se, por um lado, a intenção de formar mais médicos para atender às demandas regionais é legítima, por outro, a falta de controle e critérios rigorosos de qualidade na criação de novos cursos pode comprometer gravemente a formação desses profissionais. Garantir a qualidade da formação médica é essencial para a construção de um sistema de saúde eficiente, humano e capaz de responder às necessidades de uma sociedade em constante transformação. 

Qualidade, portanto, deve ser a premissa maior. E, acrescentamos, o fortalecimento do SUS e a valorização de requisitos que não se tornem apenas barreiras regulatórias também parecem ser pontos relevantes. Até porque mercados sem concorrência e cursos totalmente desligados do sistema únicos de saúde são fontes de problemas a médio prazo. 


Menos cursos em funcionamento e requisitos sem base científica não contribuem para o SUS nem para a saúde pública brasileira. A desigualdade de tratamento, com a escolha de condições voltadas a uma premissa política, desestimula investimentos necessários da iniciativa privada - iniciativa que, frise-se, é explicitamente valorizada na Constituição de 1988 para a área de saúde. 


Indeferir cursos de instituições de ensino privadas em São Paulo, por exemplo, para expandir vagas por meio de hospitais com atendimento SUS, não se justifica como política pública. Essa é uma postura injusta e desalentadora, que torna até a aprovação do melhor dos hospitais um tema polêmico. 


A tendência e a necessidade de urgente mudança.


Por fim, uma questão histórica do ponto de vista da educação médica. Desde 2010 realmente há uma exigência de 5 leitos para cada vaga - isto consta do instrumento de avaliação da época - mas gradativamente esta exigência passou a vincular-se ao SUS, apenas. Por outro lado, em 2017, no edital de chamamento de municípios para instalar novos cursos de medicina foram aceitos os chamados “leitos equivalentes”, como equipes multidisciplinares e centros de atenção psicossocial. Esta foi uma experiência importante, no âmbito do Programa Mais Médicos, mas também foi abandonada. Desta forma, ao longo do tempo há, sim, uma hospitalização e um viés publicista na regulação do ensino médico, algo que destoa de uma oferta de serviços de saúde cada vez mais com bases privadas. 


Enfim, mesmo comemorando a habilitação de um centro de excelência em saúde para oferta de cursos de medicina, precisamos questionar as premissas políticas que possam existir, afinal, é a qualidade e não a oferta de leitos SUS que vai garantir bons cursos de medicina. 


*condição inferida da interpretação conjunta dos Itens 2.1, “d” e 9.4, do Edital 05/2014.



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