Em 1958 uma jovem de 18 anos, a terceira dos cinco filhos de um casal de imigrantes sírios, foi assassinada por 3 homens. Eles a levaram para o Edifício Rio Nobre, em Copacabana/RJ, a espancaram brutalmente depois de um infrutífero estupro e a jogaram do 12º andar.
Dois dos criminosos, um deles menor de idade, eram homens da classe média carioca e o outro era o porteiro do prédio. O crime foi fartamente debatido na mídia e seguiu sem punições. Passados cinquenta anos do ocorrido, a vida e a morte de Aída Curi viraram tema de uma reportagem especial da TV Globo, veiculada no programa conhecido por Linha Direta.
Os irmãos de Aída ajuizaram, então, uma ação de reparação de danos morais, materiais e à imagem em face da rede Globo, afirmando que, apesar de o crime ter sido intensamente divulgado no noticiário da época, com o passar dos anos foi esquecido e que o programa teria aberto novamente as feridas ao explorar a imagem da vítima.
A ação foi julgada improcedente tanto em primeiro quanto em segundo grau e a discussão chegou ao STJ pelo RESP nº 1.335.153-RJ, interposto pelos autores.
O Ministro Relator Luís Felipe Salomão analisou a questão do uso indevido da imagem da falecida, citou o conflito entre liberdade de informação/expressão e proteção da memória individual e salientou ainda não existirem critérios únicos e definitivos para a ponderação do direito ao esquecimento, bem como em relação aos efeitos decorrentes de sua aplicação quando os fatos envolvem pessoas públicas, local público, ocorrência de crime e evento histórico.
No caso Aída Curi o julgador ressaltou que a ação poderia ter sido subdividida em duas: a primeira seria relativa à indenização pela lembrança das dores passadas e a segunda relacionada ao uso comercial da imagem da falecida.
Na época, ressaltou a aprovação do Enunciado 531 na VI Jornada de Direito Civil, segundo o qual a tutela da dignidade da pessoa humana na sociedade da informação inclui o direito ao esquecimento e abrange as vítimas como dignas desse direito, mas que, no caso específico, acolher o direito ao esquecimento, com a consequente indenização, significaria corte à liberdade de imprensa se comparado ao desconforto gerado pela lembrança. A justificativa é que a programação foi ao ar cinquenta anos após o acontecimento e que, além disso, se tornaria impraticável a atividade da imprensa para o fim de retratar o caso ‘Aída Curi sem Aída Curi’.
Também não houve indenização pelo uso da imagem porque não se considerou que ela ocorreu de maneira degradante ou desrespeitosa, não sendo, ao final, indevida ou digna de reparação.
O STF, via recurso dos autores, reconheceu a repercussão geral no tema e viu a oportunidade de analisar se o direito ao esquecimento pode ser aplicado na esfera civil; o Google entrou no processo como uma das partes interessadas, bem como a Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo), o ITS-Rio (Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro), a Artigo 19, o IBDCIVIL (Instituto Brasileiro de Direito Civil), o Instituo Palavra Aberta, o Instituto de Direito Partidário e Político/PLURIS e a Yahoo! do Brasil.
Há algumas críticas à ocasião da apreciação da matéria, pois o caso de Aída Curi não envolve a internet e os respectivos pedidos e fundamentos não são relativos à proteção de dados.
Thiago Oliva, coordenador de liberdade de expressão do InternetLab lembra que o direito ao esquecimento concebido na União Europeia consiste em pedidos para que os mecanismos de busca removam resultados de pesquisas, mantendo a informação na fonte. Ou seja, não há interferência na produção dos veículos de mídia, tópico bem diferente do debatido no processo em questão.
O conceito, inclusive, não é previsto na legislação brasileira, só tendo chegado ao Supremo Tribunal Federal por estar sendo muito discutido nas instâncias inferiores devido aos inúmeros pedidos de remoção de conteúdo que tem chegado à justiça a partir de um processo paradigmático envolvendo o Google na Espanha e julgado pelo Tribunal de Justiça da União Europeia em maio de 2014.
O autor, nesse caso, havia deixado de pagar dívidas com a seguridade social e seu imóvel residencial foi levado a leilão, conforme se noticiou no jornal La Vanguardia, no ano de 1998. A dívida foi paga, a venda judicial suspensa, e a partir de 2009 ele buscou judicialmente a desindexação da notícia que envolvia seu nome das ferramentas de busca.
A corte europeia deu provimento ao pedido de desindexação, independentemente da manutenção do conteúdo no site de origem, pois, pelo decurso do tempo, aquela informação havia se tornado inadequada, irrelevante ou excessiva, reconhecendo, pois, que a atividade exercida pelos provedores de buscas tem grande efeito sobre direitos fundamentais à privacidade e à proteção de dados pessoais dos indivíduos.
O caso em discussão no Brasil, no entanto, trata de uma disputa sobre a transmissão de um programa da TV Globo a respeito de um crime ocorrido na década de 1950 e tem contornos diferentes e mais extensos.
Algranti Filho, advogado da família Curi, defende que o cerne do direito ao esquecimento está no processo desde o início e que é irrelevante que tenha sido trazido nominalmente à tona.
Diz ainda que a desindexação não é a causa da tese, mas um efeito dela e que a família da vítima não busca a destruição de uma fonte que narra um fato verídico, mas a proteção da saúde mental de seus membros, evitando que a memória traumática do crime seja revisitada após novas divulgações pela mídia.
"Não pedimos desindexação. Nunca pedimos liminar para o programa não ser exibido. Por ser um crime que envolve pessoas anônimas, cujo nome só foi alçado pela tragédia e não pertencem à memória nacional, dizemos que elas têm direito a se preservar, a se manterem saudáveis", diz Algranti Filho.
Apenas a título de curiosidade, a TV Globo não veiculou o programa que reconstituiria o assassinato de Daniela Perez a pedido de sua mãe, Glória Perez, acontecido no ano de 1992.
Posteriormente, a novelista ajuizou pedido de indenização por danos morais e materiais em razão de reportagem exibida pela Rede Record sobre o assassinato, sem sucesso.
A reportagem, exibida em 2012, veiculava uma entrevista com o condenado pelo homicídio, o que, para a escritora, significaria tão somente especulação com claro objetivo de auferir lucro. Segundo os autos, a versão contada pelo assassino teria violado a honra de Daniella e, além disso, houve a divulgação de imagens privadas, sem autorização e sem qualquer contexto com a notícia.
O pedido de indenização foi negado em primeira e segunda instância. No STJ, o relator votou para dar parcial provimento ao recurso, reconhecendo apenas o dano moral relativo ao uso indevido da imagem da atriz. Mas o voto foi vencido.
Retomando o caso Aída Curi, também não nos parece que este seja um bom caso para o STF se debruçar e discutir tão complexo tema. É uma ação formulada em bases estranhas ao direito ao esquecimento; diz respeito à televisão, não tem nada que ser removido, desindexado, nada relacionado com a internet. O direito ao esquecimento merece, por sua complexidade e nuances, um denso debate, dentro de um caso concreto pertinente.
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