Não é raro vermos crianças gravando e publicando vídeos nas plataformas de mídias e em redes sociais, muitas vezes apenas como diversão. Todavia, em alguns casos esses vídeos são bastante acessados – se tornam virais - e o canal ou conta passa a ser monetizada. Podem inclusive ocorrer contratos de publicidade ou de remuneração feitos pela própria plataforma, rendendo lucros, e aquela criança se torna uma “influenciadora mirim”.
Normalmente são os pais/responsáveis quem gerenciam as contas. Mas várias questões devem ser postas em discussão. Como fica a imagem da criança/adolescente? E se houver audiência hostil? Como a criança pode ser protegida do cyberbullying ou ter sua frequência escolar garantida? O direito ao acesso à informação das crianças e adolescentes deve ser ilimitado? E a privacidade?
Infelizmente não existem respostas jurídicas objetivas. É preciso cotejar a legislação de proteção à criança e ao adolescente e as novas regras sobre proteção de dados e privacidade para que os pequenos influenciadores sejam protegidos de eventuais abusos.
O Marco Civil da Internet disponibilizou aos pais ou responsáveis meios de fiscalização dos conteúdos acessados por crianças e adolescentes na web. No artigo 29 e parágrafo único, consta:
“Art. 29. O usuário terá a opção de livre escolha na utilização de programa de computador em seu terminal para exercício do controle parental de conteúdo entendido por ele como impróprio a seus filhos menores, desde que respeitados os princípios desta Lei e da Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 – Estatuto da Criança e do Adolescente.
Parágrafo único. Cabe ao poder público, em conjunto com os provedores de conexão e de aplicações de internet e a sociedade civil, promover a educação e fornecer informações sobre o uso dos programas de computador previstos no caput, bem como para a definição de boas práticas para a inclusão digital de crianças e adolescentes.”
A privacidade dos menores fica, portanto, relativizada pela medida protetiva, o que seja: fica autorizado o controle parental para salvaguardar a criança e o adolescente de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. Não se extingue o direito à privacidade do menor, mas limita-se o seu exercício na medida necessária e adequada para que seja protegido dos abusos que possam ocorrer no mundo virtual.
O Marco Civil, como se percebe, não foi suficiente para salvaguardar as crianças e adolescentes e o regramento continuou na Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais, em seu art. 14.
Aqui a lei determina que o tratamento de dados pessoais de crianças deverá ser realizado com o consentimento específico e em destaque, dado por pelo menos um dos pais ou pelo responsável legal. E que os controladores deverão manter pública a informação sobre os tipos de dados coletados, a forma de sua utilização e os procedimentos para o exercício dos mesmos direitos tutelados aos adultos.
A lei também explicita as ocasiões em que os dados poderão ser coletados sem o consentimento, jamais podendo ser repassados a terceiros e, interessante: o controlador deve realizar todos os esforços razoáveis para verificar que o consentimento foi dado pelo responsável pela criança, consideradas as tecnologias disponíveis.
E a criança que está, de alguma forma, trabalhando para as plataformas? Não há menção a respeito nas leis citadas e, como regra geral, o trabalho é proibido para quem ainda não completou 16 anos, salvo na condição de aprendiz, a partir dos 14.
Neste caso, vamos analisar o que o ECA já prevê em relação à participação de crianças e adolescentes em trabalhos artísticos, como espetáculos públicos e concursos de beleza. A lei determina que cabe à autoridade judiciária disciplinar ou autorizar, por meio de portaria, a participação infantil nestes eventos, considerando as peculiaridades do local, as instalações, os frequentadores e a natureza do espetáculo.
O Estatuto da Criança e do Adolescente exige nestas ocasiões:
autorização expressa dos pais ou responsáveis;
comprovação de matricula e frequência escolar mínima prevista na LDB (9.394/96); e
compatibilidade de atividades, horários, instalações e recursos humanos com a sanidade, a segurança e o desenvolvimento físico, psíquico, moral e social da criança ou do adolescente;
É bom deixar claro que o artigo 149, II do ECA autoriza a participação no evento apenas com autorização ou portaria judicial. A companhia dos pais ou responsáveis é suficiente apenas no inciso I deste artigo, quando a criança ou adolescente faz parte da platéia.
participação: no palco
entrada e permanência: na platéia
A previsão do ECA não abrange a situação dos influenciadores mirins. O que temos de concreto até agora são as normas previstas no art. 149 do Estatuto e que, no que couber, devem ser observadas para que seja desenvolvido o trabalho do influenciador digital menor de 18 (dezoito) anos.
Vale ressaltar que as leis aplicáveis aos artistas mirins (Convenção 138 da OIT e ECA) se referem a crianças e adolescentes, ou seja, abaixo dos 18 anos.
Trabalho ou diversão?
De acordo com a Rede Peteca – Chega de Trabalho Infantil, plataforma que visa a promoção dos direitos da criança e do adolescente a partir da erradicação do trabalho infantil no país, a “profissionalização” se dá quando há vídeos disponibilizados em plataformas nas quais crianças e adolescentes aparecem com regularidade, em suas vidas cotidianas. Podem estar desembrulhando “presentes” ou jogando, em cenários geralmente domésticos ou coloridos, e já possuem milhares de seguidores. Nos vídeos postados são observadas práticas publicitárias. Nesse contexto específico, a atividade é caracterizada como trabalho infantil artístico.
No caso de vídeos sem qualquer publicidade, sem roteiro, mas ainda com a opção de monetização do canal ativada, a caracterização é mais difícil. Embora os envolvidos estejam recebendo alguma renda, a criança ou adolescente não está desenvolvendo atividade artística, mas apenas ‘existindo’ e sendo exposta na rede.
A Rede Peteca menciona uma ação civil pública movida pelo Ministério Público de São Paulo contra o Google em dezembro de 2018, requerendo que a empresa retirasse uma centena de vídeos da plataforma YouTube, justamente por conterem publicidade indireta e abusiva gerada por influenciadores mirins. A ação pedia providências para que a empresa passasse a respeitar a legislação existente no Brasil, além de requerer condenação de pagamento de indenização por dano moral coletivo.
A ação não obteve julgamento de mérito, pois Google, MP-SP e Conar assinaram um acordo prevendo, entre outras medidas, a produção de material sobre educação digital preventiva.
As medidas prometidas pelo Google, segundo a professora Sandra Regina Cavalcante, doutora pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP) e autora do livro “Trabalho Infantil Artístico – do deslumbramento à ilegalidade”, apesar de tratar sobre questões importantes da segurança na Internet, não enfrentam os problemas do trabalho infantil artístico ou da monetização dos canais. Segundo ela, “a empresa atribui toda a responsabilidade aos pais, pois nem mesmo os anunciantes ou demais agentes envolvidos no modelo de negócio são citados. Com isso, ignora que a estrutura e a dinâmica do mercado são também responsáveis por criar a demanda pelo trabalho infantil”.
Seria bastante interessante que as próprias plataformas de redes sociais fizessem um controle preliminar, especialmente nas contas monetizadas, considerando seu alto alcance, reduzindo a exposição da criança produtora de conteúdo aos riscos da internet.
Em relação aos valores recebidos pelos menores de idade e considerando a realidade brasileira, também seria prudente a permissão de utilização do dinheiro somente mediante alvará judicial e comprovação da utilização a favor da criança.
O tema é relativamente novo e ainda precisa ser bem debatido, levando em conta, claro, as experiências internacionais.
O digital influencer mirim: a lei francesa
O Parlamento francês aprovou, por unanimidade, uma lei que enquadra a atividade das crianças influenciadoras na internet. Foi o primeiro país do mundo a legislar sobre a questão.
A nova lei regulamentou a atuação das crianças como influenciadoras na internet, considerando o youtuber como uma forma autorizada de trabalho infantil. Também houve estabelecimento de regras sobre o destino da renda das postagens. Na prática, como os valores recebidos pelos influenciadores são elevados, muitos pais deixam de trabalhar e as crianças passam a sustentar a casa. Tendo isso em vista, a legislação previu que o dinheiro recebido nessas atividades deverá ser depositado em uma conta bancária que somente pode ser acessada com a maioridade.
Outra medida é o estabelecimento de horários que as crianças podem se dedicar às postagens para que não afete o estudo e o processo de desenvolvimento saudável. Também como forma de preservação dos direitos da personalidade, em especial de imagem, foi estabelecido o direito ao esquecimento, por meio do qual a criança pode pedir a completa exclusão do conteúdo da plataforma, que deve respeitar a escolha.
Thomas Rohmer, presidente do Observatório da Parentalidade e da Educação Digital (Open), que acompanhou de perto a tramitação do projeto de lei e auxiliou na sua redação, disse à agência de notícias francesa RFI que o trabalho como youtuber se trata de uma atividade mercantil e a vulnerabilidade das crianças precisa ser levada em conta.
A associação presidida por Rohmer é cética em relação ao direito ao esquecimento que a lei francesa preconiza, lhe parecendo uma medida utópica. Ele salienta que os conteúdos publicados não implicam apenas quem publica e as plataformas, mas qualquer um que assista e possa salvar as imagens, guardá-las e, um dia, voltar a publicá-las. De fato, parece-nos ingênuo pressupor que conteúdos da internet poderão ser deletados quando assim convier.
Na França, por fim, as plataformas de publicação também serão chamadas a melhorar o combate à exploração ilegal da imagem dos menores de 16 anos e a aumentar a vigilância quanto a imagens que possam violar a dignidade das crianças e adolescentes.
Leia:
Enfim, crianças youtubers fazem sucesso em praticamente todos os países – a reportagem da RF1 relata que dentre os 10 influenciadores mais bem pagos da internet hoje, dois têm menos de 10 anos. Também temos redes sociais como o TikTok, que, apesar de não ser para o público infantil, já conta com milhões de usuários baixo dos 14 anos.
A falta de regulamentação ainda é a regra e, ao fim e ao cabo, crianças e adolescentes ficam a mercê de seus responsáveis, sem efetivo controle sobre o quanto a atuação na rede pode atrapalhar os estudos, sobre como o dinheiro recebido pelas plataformas e anunciantes será gerenciado. O impacto que a exposição excessiva poderá causar - tanto no presente quanto no futuro - também ainda não é bem compreendido, assim como a perda da noção da intimidade e a “adultização" precoce.
A ideia final não é demonizar as redes sociais; mas, em se tratando de crianças e adolescentes, toda precaução é bem vinda.
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