No momento, as atenções do Congresso estão voltadas para a CPI da Covid. Mas as atividades da Câmara em relação ao projeto que regulamenta o homeschooling segue de vento em popa. Deputadas governistas o movimentaram depois de parado por dois anos e agora está prestes a ser votado.
O PL 3262/2019 é de autoria das deputadas Chris Tonietto (RJ), Bia Kicis (DF) e Caroline de Toni (SC), todas do PSL, e aguarda votação na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara Federal, presidida por Bia Kicis. A relatora Greyce Elias, do Avante de Minas Gerais, apresentou parecer favorável.
Em manobra na CCJ, Bia Kicis conseguiu dispensar o PL de ser apreciado por outras comissões, como a Comissão de Educação e a de Seguridade Social. A alegação é a de que, como o projeto apenas altera um artigo do Código Penal, o 246 (que classifica como crime de abandono intelectual deixar de prover educação aos filhos em idade escolar), sua análise deveria ser apenas jurídica.
É preciso esclarecer que Bia Kicis atuou para desvincular a regulamentação do homeschooling do projeto que “apenas” descriminaliza a prática. Isto não é comum de ocorrer e foi feito apenas para que o projeto chegasse mais rápido ao plenário, driblando os opositores.
O texto que os governistas querem aprovar às pressas, portanto, altera um artigo do Código Penal, mas não estipula as normas do ensino domiciliar. De qualquer forma, na realidade, se a prática não é criminalizada, resta liberada e da pior forma possível, sem regulamentação.
O restante do projeto, ou seja, as normas que podem vir a reger o homeschooling, caso este seja aprovado, estava tramitando junto com o texto das deputadas da base do governo e vincula a educação domiciliar a instituições de ensino, que deverão fazer supervisões periódicas do aprendizado dos estudantes via tutores/preceptores. Esta proposta tem sido defendida pelo presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL). Porém, a deputada Bia Kicis, temendo a oposição, passou na frente o texto que descriminaliza a prática.
É preciso salientar que o frenesi em regulamentar o ensino domiciliar relaciona-se com a ideia de que as famílias devem ter a “primazia na educação das crianças”. Seria uma resposta ao que alguns chamam de "doutrinação de estudantes nas escolas".
Mas os especialistas em educação sustentam que essa imersão familiar é um dos pontos fracos do homeschooling. Sem contar que a pauta não é prioridade em um momento como este, em que alunos e professores de todo o Brasil enfrentam graves desafios causados pela pandemia da Covid-19, em especial pelo fechamento das escolas e as desigualdades no acesso às aulas remotas.
Vale lembrar que o assunto não é novo. O primeiro projeto relacionado ao homeschooling foi apresentado em 2001. Desde então, mais dez propostas foram encaminhadas, mas nenhuma prosperou. Em 2018, os ímpetos pela iniciativa foram renovados assim que o STF não considerou a modalidade constitucional, mas salientou que ela precisava ser regulamentada. Com a vitória do atual presidente, que incluiu a pauta nas 35 prioridades de seu governo, o projeto de lei que regulamenta o a atividade ganhou forças.
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Pensamentos divergentes
O Sinpro/DF expõe que o homeschooling desrespeita diversos artigos do Estatuto da Criança e do Adolescente e da Constituição Brasileira, além de abrir portas para a terceirização e a privatização da Educação. Alega que o projeto desconsidera o papel que “a escola cumpre na convivência, socialização, construção de uma cultura de tolerância e de cooperação”. Além disso, lembra que no Brasil a escola é o espaço que oferece a merenda, uma contraposição ao trabalho infantil e à violência doméstica.
A ONG Todos pela Educação salienta questões importantes que devem ser levadas em conta na reflexão sobre o tema: inicialmente, considera inadmissível que, para o Governo, esta seja a prioridade do momento na Educação, projeto que não faz parte das medidas de enfrentamento à pandemia para a Educação. Pelo contrário, o Governo Federal, no seu entender, desamparou as secretarias de Educação tanto no âmbito financeiro quanto de planejamento sobre o acesso à tecnologia, ensino remoto, retorno às aulas, medidas de redução à evasão escolar e o aumento de violência doméstica, sendo escancarado o desvio dos esforços do que deveria ser prioritário no mandato.
Para a ONG, regulamentar a prática de Educação Domiciliar não afeta apenas os atuais adeptos, mas também os milhões de estudantes regulares, especialmente os mais vulneráveis.
“O risco é regulamentar a Educação Domiciliar para um pequeno grupo e a prática abrir espaço para comportamentos de risco na família, como abandono escolar, violência doméstica e exposição às mais diversas situações de privação e estresse tóxico que hoje são diretamente enfrentadas pelas escolas. Esse elemento é ainda mais preocupante considerando o aparato do Estado para monitorar e regular os processos relacionados à Educação Domiciliar.”
Também não passou despercebida que o homeschooling parte do pressuposto de que a Educação escolar se limita ao ensino do que está no currículo, com avaliação periódica em momentos específicos da trajetória curricular. Ocorre que a Educação escolar vai além disso, como diz o Parecer 34/2000 da Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação (CEB/CNE), que deixa evidente a importância da socialização com outras crianças e jovens e a exposição ao diverso e ao contraditório como aspectos fundamentais de seu desenvolvimento. A escola é o melhor ambiente para que isso aconteça.
Também, como já apontamos em nosso texto Entenda melhor o HomeSchooling: podemos falar em anticiência?, não existem evidências na literatura internacional de que, quando controlado pelo nível socioeconômico do aluno, crianças/jovens em homeschooling têm desempenho escolar melhor em relação a um estudante em Educação formal. Mesmo porque as pesquisas com este público sofrem de um forte viés de seleção.
Fato que mais de 300 entidades já assinaram manifesto contra projetos de homeschooling: são instituições acadêmicas, sindicais, religiosas e organizações ligadas aos direitos de educação e da defesa dos direitos humanos, que afirmam não medir esforços para mobilizar a sociedade contra a prática que, a seu critério, são um "extremo risco" e "ataque" ao direito à educação.
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Relembrando que o texto a ser votado em breve é o Projeto de Lei 3.262/19, que altera o art. 246 do Código Penal para incluir um parágrafo único que prevê que a educação domiciliar não configura crime de abandono intelectual. O próximo será o Projeto enviado pelo Poder Executivo, que pretende a regulamentação da prática.
Ambos os textos são refutados por autoridades da Educação, que os consideram “antipluralista, anticiência e intolerante”, nos dizeres de Priscila Cruz, presidente do Todos pela Educação. Ela vai além e diz que o homeschooling é a "negação do século 21".
Acompanharemos os próximos capítulos deste e dos demais projetos a respeito.
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