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Ana Luiza Santos e Edgar Jacobs

A publicidade dentro de escolas é abusiva e ilegal

 

O debate histórico nos mostra que o conceito de infância ou de criança que conhecemos é bastante recente. Ele foi socialmente construído somente a partir do século XVIII, quando as primeiras teses da pedagogia moderna começaram a pensar a criança de acordo com suas particularidades físicas, cognitivas e sociais. Só então temas como o desenvolvimento e o aprendizado  de acordo com a faixa etária se tornaram pauta das discussões políticas, especialmente após a Revolução Francesa.


Internacionalmente, há o marco da fundação da Unicef, em 1946, o  Fundo das Nações Unidas para a Infância que recebeu da Assembleia Geral da ONU o mandato de defender e proteger os direitos de crianças e adolescentes, ajudar a atender suas necessidades básicas e criar oportunidades para que alcancem seu pleno potencial.


O UNICEF é guiado pela Convenção sobre os Direitos da Criança e é o principal defensor global de meninas e meninos. Presente no Brasil desde 1950, apoiou importantes transformações na área da infância e da adolescência no país, participando, inclusive, da mobilização que resultou na aprovação do artigo 227 da Constituição Federal e na elaboração do Estatuto da Criança e do Adolescente.


Hoje, nossas normas determinam que a criança é prioridade absoluta e deve ser cuidada não só pela família, mas pela sociedade e pelo Estado; a responsabilidade compartilhada é prevista justamente no artigo citado. E isto inclui a iniciativa privada, que precisa ser responsabilizada pelo direcionamento ilegal de comunicação mercadológica para o público infantil e também por não abandonar de vez a prática.

 

 

Debate e consciência


De olho na previsão constitucional, nas últimas décadas, o Brasil promoveu várias discussões a respeito da necessidade de poupar as crianças da pressão consumista e da exploração comercial.


A conscientização sobre os impactos negativos da publicidade infantil fez muita gente perceber como é antiética e abusiva a prática de direcionar comunicação mercadológica a pessoas em peculiar estágio de desenvolvimento.


“As crianças, pessoas de até 12 anos conforme o Estatuto da Criança e do Adolescente, não têm capacidade plena para analisar criticamente os argumentos persuasivos da publicidade e, por isso, devem ter seu tempo de amadurecimento respeitado, sendo protegidas nas relações de consumo – como previsto no Código de Defesa do Consumidor”. (Programa Criança e Consumo, do Instituto Alana)


As empresas, por sua vez, foram obrigadas a mudar de estratégia e ver como alvo de sua publicidade apenas pessoas adultas.


Ocorre que, como denunciam entidades da sociedade civil como o Programa Criança e Consumo, do instituto Alana, restam aquelas que, mal ‘intencionadas, mantiveram o foco nas crianças, mas ajustaram a publicidade para que estivesse camuflada de ações educativas ou culturais e que, restrita a espaços fechados, fosse mais difícil de fiscalizar e denunciar’.


Um destes espaços, infelizmente, é a escola, que pode receber ações e projetos pretensamente voltados para a educação da sustentabilidade, da boa alimentação, mas que, se analisados, são verdadeira publicidade direcionada a crianças. E nas escolas as crianças estão desacompanhadas dos pais/responsável legal, de forma que não há supervisão das famílias, que, muitas vezes, só tomam conhecimento do evento quando a criança alerta.


O Programa Criança e Consumo alerta que as ações comerciais em escolas estão a cada dia mais sofisticadas (e perniciosas) porque mais difíceis de serem identificadas, pelas crianças, como mensagens publicitárias. Elas fazem, por exemplo, com que as crianças provem um produto ou recebam brindes e elas não reconhecem tal ação como comercial, já que, em sua imaturidade, não identificam o interesse de venda na qual se funda.


Normas relativas


Em 2014 foi publicada a Resolução da CONANDA nº 163, que dispôs sobre a abusividade do direcionamento de publicidade e de comunicação mercadológica à criança e ao adolescente.


Por 'comunicação mercadológica' entende-se toda e qualquer atividade de comunicação comercial, inclusive publicidade, para a divulgação de produtos, serviços, marcas e empresas independentemente do suporte, da mídia ou do meio utilizado.


Ela abrange, dentre outras ferramentas, anúncios impressos, comerciais televisivos, spots de rádio, banners e páginas na internet, embalagens, promoções, merchandising, ações por meio de shows e apresentações e disposição dos produtos nos pontos de vendas.


É considerada abusiva a prática do direcionamento de publicidade e de comunicação mercadológica à criança, com a intenção de persuadi-la para o consumo de qualquer produto ou serviço e utilizando-se, dentre outros, dos seguintes aspectos:


  • linguagem infantil, efeitos especiais e excesso de cores;

  • trilhas sonoras de músicas infantis ou cantadas por vozes de criança;

  • representação de criança;

  • pessoas ou celebridades com apelo ao público infantil;

  • personagens ou apresentadores infantis;

  • desenho animado ou de animação;

  • bonecos ou similares;

  • promoção com distribuição de prêmios ou de brindes colecionáveis ou com apelos ao público infantil; e promoção com competições ou jogos com apelo ao público infantil.


Também se considera abusiva a publicidade e comunicação mercadológica no interior de creches e das instituições escolares da educação infantil e fundamental, inclusive em seus uniformes escolares ou materiais didáticos.


A Resolução também enumera os princípios gerais a serem aplicados à publicidade e à comunicação mercadológica dirigida ao adolescente, além daqueles previstos na CF, como, por exemplo, não favorecer ou estimular qualquer espécie de ofensa ou discriminação de gênero, orientação sexual e identidade de gênero, racial, social, política, religiosa ou de nacionalidade.


No mesmo ano, o Ministério Público Federal produziu e enviou para as Secretarias de Educação de São Paulo as recomendações 66/2014 e 67/2014, com a finalidade de suspender os shows do famoso palhaço que cativava crianças e adolescentes das instituições públicas de ensino do estado.


O MPF, “pela Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão resolve recomendar a essa municipalidade, que promova, no prazo máximo de 30 dias e em âmbito municipal, a suspensão dos shows do Ronald Mcdonald nas instituições públicas de ensino infantil e fundamental, bem como a cessação da exibição da personagem vestido de palhaço que oferece gratuitamente diversão, brincadeiras e aproveita esse momento lúdico para cativar consumidores, sob a justificativa de transmitir conceitos educativos, como respeito ao meio ambiente, valorização da amizade e da vida ativa e dicas de bons hábitos.


Recomenda-se, ainda, que não seja permitida a exibição de shows semelhantes promovidos por quaisquer outras empresas que, da mesma maneira, tentem se aproveitar de momentos lúdicos para cativar crianças e persuadi-las ao consumo ou à valorização de determinada marca”. (Recomendação nº 66/2014 - PR-SP-00074793/2014)


Já em 2016 tivemos a publicação dNota Técnica 3/2016, do Ministério da Justiça, por meio da Secretaria Nacional do Consumidor, que cuida da abusividade da publicidade no ambiente escolar e de alimentos ultraprocessados dirigida ao público infantil.


A normativa considera, entre outros fundamentos, o relatório final da pesquisa desenvolvida pelo Grupo de Pesquisa da Relação Infância, Juventude e Mídia da Universidade Federal do Ceará (GRIM), cuja conclusão é a de que é fundamental que a publicidade dirigida às crianças seja abolida dos ambientes escolares, tendo em vista também a vedação legal que se depreende dos artigos 37, § 2º e 39, IV do Código de Defesa do Consumidor, o que deve ser objeto de atuação dos órgãos de defesa do consumidor.


Citações da pesquisa acadêmica na Nota Técnica mostram que, sobre o mercado publicitário dedicado à persuasão do público infantil, a literatura internacional já tem como incontroverso que o mercado de produto e serviços infantis é um dos mais estratégicos, pela sua característica multidimensional. Ele se configura ao mesmo tempo em um mercado primário ou direto, um mercado de influência, e um fortíssimo mercado futuro. 


O público infantil é tratado como um mercado primário ou direto pois, muitas vezes, possui dinheiro próprio, proveniente dos seus pais, familiares e responsáveis legais. Este mesmo público decide, por conta própria, com o que quer gastar suas economias, ainda que com produtos de valores pequenos, como balas, picolés, figurinhas, refrigerantes, revistas em quadrinhos e brinquedos de baixo valor.


E o mercado primário tem como seus maiores centros as cantinas e lanchonetes escolares, locais em que as crianças exercem seu comportamento de consumo livre de qualquer interferência adulta.


Por esta razão, há forte presença de estratégias de mercado dos fornecedores de produtos e serviços destinados ao consumo infantil no relacionamento com as instituições de ensino, públicas e privadas, que deixam, muitas vezes, de fazer esta reflexão crítica.


Finalizando, nos termos da Nota técnica nº 3/2016/CGEMM/DPDC/SENACON, as escolas são ambientes que representam segurança e confiança plena para as crianças, o que as tornam mais vulneráveis aos efeitos dos apelos publicitários, quaisquer que sejam. O convite à compra nestes ambientes, sem a chance de clara identificação  das intenções do discurso (peculiar para o publico infantil), já representa uma abusividade.


Para proteger a criança resta-nos garantir escolas, creches e instituições de educação infantil  livres de publicidade. A providência, claro, não atinge todas as dimensões do problema e as diversas especificidades dessa atividade, cujos impactos e medidas de intervenção do Estado merecem maior discussão e medidas, mas já é um grande passo  em prol da efetividade plena dos direitos dos cidadãos em formação.


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