A discussão sobre os atrasos do Ministério da Educação nos processos com vestibular autorizado é tão incomum que pode despertar dúvida se realmente há lentidão excessiva na aprovação dos cursos de medicina.
O MEC afirma que o processo segue seu fluxo normal e nega atrasos injustificados. Porém, um fato ocorrido nas últimas semanas é esclarecedor sobre esse tema: Em 25 de março, foi autorizado o curso de medicina de uma Instituição pública, a UNILAB, localizada no Ceará. Esta aprovação seguiu, em tese, um fluxo bem similar ao dos procedimentos sub judice, mas o andamento foi muito mais rápido. Isto porque o processo é de 2023 (e-MEC nº 202330925) e durou aproximadamente um ano. Enquanto isso, o curso discutido na reclamação da AGU teve seu protocolo autorizado em janeiro de 2022 (e-MEC 202200742) e não teve parecer final até o momento.
A tramitação excepcionalmente rápida da IES pública, além de evidenciar que o procedimento para ser mais lesto, viola a ordem cronológica prevista na Portaria 21/2017 (art. 1º, §11). Essa Portaria regulamenta os processos de regulação, avaliação e supervisão da educação superior no sistema federal de educação que, é bom lembrar, é composto por IES públicas e privadas (art. 16, I e II, da LDB).
Ainda para confirmar a demora, consta da decisão que determinou a abertura de vestibular e agora está sendo discutida no STF — processo nº 1066986-35.2020.4.01.3400 – que o MEC fez, em dezembro de 2023, um pedido de prazo de 90 dias para “o cumprimento integral da decisão”. Esse lapso de tempo, solicitado pela própria União, demonstra que não havia justificativa para atrasos ainda maiores e que o curso já deveria ter sido analisado antes do fim de março.
Frente a essas promessas descumpridas e a rapidez que alcançou em curso público semelhante, parece evidente que o problema do MEC não é o tempo para execução, mas sim o interesse em atender às ordens judiciais.
O que deve acontecer agora?
O STF já tem ciência de todo esse contexto, especialmente dos atrasos e chicanas do MEC. O Ministro relator dos processos de medicina, Min. Gilmar Mendes, tratou do tema em cautelar de 22 de dezembro, na qual determina que o MEC garanta a duração razoável dos processos.
Em defesa de sua tese e dos atrasos, a recente reclamação feita pela AGU cita uma decisão de janeiro do Min. Cristiano Zanin (RCL 64.890) como um precedente a seu favor. Alega, em resumo, que o Ministro cassou uma liminar de segunda instância que descumpria a cautelar do STF na ADC 81 porque poderia ocorrer a: “a análise do pedido de credenciamento do curso de medicina, sem a observância dos trâmites formais impostos pela legislação”. Porém, a União deixou de dizer que o Min. Zanin tratou do andamento de processo administrativo em fase embrionária, que não possuía ainda nenhuma análise de requisitos e, segundo o STF, deveria ficar realmente sobrestado. Nos casos dos vestibulares, ao contrário, os processos já estavam avançados e a mesma decisão do STF, na ADC 81, impõe seu andamento regular.
Não bastasse isso, em relação à abertura de cursos antes de portarias já existe uma pertinente análise do Superior Tribunal de Justiça, que remete às avaliações já feitas e rechaça o argumento de que o curso seria um problema de saúde pública. Nesse sentido, decidiu o STJ:
Suspensão de tutela antecipada. Indeferimento. Autorização para funcionamento de curso de medicina. Grave risco de lesão ao interesse público e de ocorrência de efeito multiplicador não-demonstrados. Inexistência de lesão à saúde pública. […] 2. O funcionamento de uma turma até a realização, pelo Ministério da Educação, das diligências necessárias à verificação do atendimento dos requisitos indispensáveis à instalação do curso de medicina não tem o condão de causar lesão à saúde pública, mormente tendo em conta a positiva avaliação técnica realizada no local. (…) (AgRg na SS n. 1.762/DF, relator Ministro Humberto Gomes de Barros, relator para acórdão Ministro Nilson Naves, Corte Especial, julgado em 16/4/2008, DJe de 25/8/2008.)
A decisão do STJ revela dois pontos cruciais. Primeiro, o MEC tem histórico de atrasar decisões sobre portarias para obstruir a abertura de cursos de medicina iniciados a partir de ordens judiciais. Segundo, a avaliação técnica do Órgão impede qualquer argumento de "lesão à saúde pública".
Comprova ainda a ausência de lesão à saúde pública o fato de que o MEC não tentou usar nenhuma medida geral para suspender as decisões sobre medicina, que existem desde 2018. A própria AGU, na audiência pública da ADC 81, disse que não tentou cassar as decisões iniciais “…porque as liminares eram para que nós pudéssemos fazer essa análise. E assim foi feito”. Ou seja, tudo o que o MEC precisava ter feito era exercer sua competência, apenas isso.
Depois de várias ordens simples para que essa análise fosse executada, com imposição de multa, inclusive, agora houve uma “medida de efetivação” imposta nos termos do Art. 139 do CPC. Esta decisão de apoio não pode ser tratada como ato isolado, sob pena de atrasos e descumprimento de ordens judiciais se tornarem corriqueiros e medidas coercitivas ou sub-rogatórias se tornarem letra-morta no Código de Processo Civil.
O caso em questão é de descumprimento de ordem judicial pelo MEC. Instâncias iniciais da Justiça Federal já constataram isso e o próprio STF também. As decisões sobre vestibular são uma medida atípica bem ponderada nesse sentido. Diante disso, o que deve prevalecer é a decisão acerca da aplicação do Art. 139 do CPC, tema sobre o qual o ilustre Min. Nunes Marques já se manifestou com ênfase ao proferir voto no qual afirma:
“Ao outorgar ao juiz poder onímodo e autoexecutável de coerção, o legislador confiou à autoridade judiciária nada mais nada menos que um poder de polícia, a ser exercido de modo sumário, com o propósito de fazer valer ordem judicial proferida presumivelmente de acordo com o devido processo legal. […]
O descumprimento de uma decisão judicial na mais remota comarca do País não apenas atinge a parte interessada no acatamento da determinação; também põe em xeque a credibilidade de todo o sistema de justiça e, por consequência, do Estado de direito. O efeito multiplicador de uma atitude dessas nunca pode ser menosprezado, de modo que a aplicação razoável do dispositivo ora questionado surge como forte inibidor de condutas contrárias à autoridade dos juízes, dos tribunais e, sobretudo, da lei e do direito”. (Trecho do voto na ADI 5941, julgada em 2023)
Esta é a questão em jogo, mesmo após a decisão do STF na ADC 81, existe um efeito multiplicador da atitude ilegal do MEC em relação à Justiça Federal, como se não houvesse mais a necessidade de zelar pela duração razoável dos processos administrativo, como se fosse possível esperar inerte a decisão final da Suprema Corte.
Nesse contexto, a medida escolhida é razoável. Uma decisão baseada nas análises técnicas do Ministério, respeitando a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, deveria ser perfeita para forçar a análise da Portaria. Até porque, evita multas ainda maiores e, no limite, impede até mesmo consequências penais para quem está se omitindo. Permitir a abertura dos vestibulares deveria despertar o senso de obrigação do Ministério da Educação, mas aparentemente nem isso funcionou.
No final de tudo, é isso o que não se pode olvidar: o Poder Judiciário sempre determinou que o MEC analisasse, livremente, os processos. Mas, passados anos de tramitação, poucos foram concluídos.
Sejamos claros: a inércia do MEC busca bloquear informalmente os processos regulatórios que demonstram qualidade, uma prática autoritária que prejudica não só a parte vencedora, mas especialmente a força das decisões dos Tribunais e a Sociedade, privada de bons cursos. Isso o Poder Judiciário não poderia permitir. E, de fato, os Juízes foram obrigados a adotar uma ação mais severa para demonstrar que a inatividade ou a desobediência de ordens judiciais nunca foram uma alternativa.
*Leia a primeira parte do artigo aqui.
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