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Edgar Jacobs

MEC deve considerar a região de saúde para autorizar cursos de medicina, Judiciário confirma.

O Ministério da Educação (MEC) tem desempenhado, de forma lenta, a tarefa que lhe foi atribuída pelo Supremo Tribunal Federal (STF): a análise dos processos administrativos pendentes relativos à autorização de novos cursos de medicina. Para tanto, o MEC utiliza uma norma bastante questionada, a Portaria SERES/MEC 531/2023, que alega regulamentar a decisão do STF. No entanto, tal portaria tem sido interpretada como uma barreira regulatória que dificulta a criação de novos cursos. Na prática, com base nesta norma, quase metade dos processos já avaliados foi indeferida, e todos os cursos autorizados tiveram redução no número de vagas.

Entre as regras mais restritivas, destaca-se a alteração no objeto de análise da necessidade social do curso. Enquanto a Lei nº 12.871/2013, que instituiu o Programa Mais Médicos, determina a análise da região de saúde, a Portaria de 2023 limita essa avaliação ao município onde o curso será sediado. Além disso, a referida norma adota um critério contraindicado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e por renomados estudos brasileiros sobre educação médica.

Sobre o critério e a justificativa do MEC

Desconsiderando as análises feitas in loco por suas comissões de especialistas, bem como os pareceres opinativos do Conselho Nacional de Saúde, o Ministério da Educação criou uma nota técnica impõe um teto de 3,73 médicos por mil habitantes nos municípios-sede dos cursos, mesmo que as regiões de saúde tenham patamares mais baixos.

Muito pode ser debatido sobre o próprio indicador, mas o foco da crítica aqui é a delimitação do objeto de análise – a já mencionada questão da região de saúde. A "região de saúde" é um espaço geográfico definido na legislação do Sistema Único de Saúde (SUS). Às vezes, essa área pode ser menor que o município, restringindo-se a um distrito sanitário, mas, na maioria dos casos, abrange vários municípios vizinhos.

Essa definição é crucial, pois o STF determinou que devem ser aplicados os parágrafos 1º, 2º e 7º do artigo 3º da Lei do Mais Médicos e quanto esses dispositivos tratam da necessidade social sempre a relacionam com a "região de saúde" e as “cidades do entorno”.

Por isso, causou surpresa quando a regulamentação do MEC limitou a análise ao município-sede. E ainda mais impactante foi a justificativa apresentada pela União, que alegou que sua norma “tem como contexto a literalidade da decisão proferida no âmbito da ADC 81”. Isso porque, ao final do longo acórdão do STF — que conta com mais de 100 páginas — os ministros mencionam a aplicação da Lei 12.871/2013 em relação aos municípios, sem repetir o termo “região de saúde”.

Essa interpretação é extremamente limitada, não apenas porque uma interpretação literal das decisões do STF é inadequada, mas também porque, na mesma frase “interpretada literalmente”, o STF cita a Lei, que expressamente impõe a análise “no âmbito da região de saúde”.

É evidente que o MEC tenta transferir a responsabilidade pela restrição ao texto do julgado. E faz isso por conveniência, o que no limite lembra o comportamento de uma criança que, surpreendida em erro, tenta culpar um colega. Agindo assim, entretanto, evidencia ainda mais a falha.

Em suma, na Portaria SERES/MEC 531/2023, o espaço de avaliação da necessidade social foi restringido com base em uma “literalidade seletiva”, por meio da qual o MEC escolhe uma parte da decisão do STF para subverter o conteúdo da lei citada no mesmo julgado.

Decisão judicial recente

Não é difícil concluir que, entre a literalidade seletiva do Portaria e o texto da Lei, prevalece o que está escrito na Lei. Esta também foi a percepção de uma recente decisão judicial sobre a Portaria SERES/MEC 531/2023.

Na liminar, proferida em Minas Gerais, no dia 16 de agosto de 2024, foi afastada ou postergada a discussão de vários artigos da Portaria em questão, mas ficou claro que:

“A Lei n. 12/871/2013, em seu art. 3º, § 1º, considera que os aspectos a ser considerados na pré-seleção de municípios devem ser tomados no âmbito da região de saúde. Embora haja divisibilidade entre os dispositivos da portaria SERES/MEC n. 531/2023 e vários deles mencionem município e região, tal como o próprio § 8º, do art. 8º, da Portaria em questão, há potencial risco de utilização da interpretação mais restriva com base nas menções contidas no caput de tais dispositivos e aplicação apenas subsidiária dos demais dispositivos secundários ao caput. E se isso ocorrer, a pré-seleção tomará em consideração aspectos apenas do município em que está sediada a parte autora e não dentro da região em que está inserido. Assim, conquanto seja possível priorizar a conservação dos atos combatidos, cabe, evidentemente, ao administrador adotar técnica de decisão e processamento do pleito em questão em total conformidade com os parâmetros Lei n. 12/871/2013, a qual não restringe a análise ao município em que situada a instituição de ensino requerente, mas sim a tomada em consideração de todo o âmbito da região de saúde em que o município está localizado. Dentre duas ou mais interpretações extraíveis do texto, é impositiva aquela que seja mais compatível com a normatividade legal e constitucional. Essa aplicação/concretização do direito é realizada não apenas pelo(a) juiz(a), mas por tantos quantos têm de decidir acerca do sentido do texto normativo em relação a um determinado caso, impondo-se também ao administrador na tomada de decisões administrativas”. (Texto integrado em parágrafo único. grifos no original)

O julgado constatou o risco de dano iminente e, com base na fundamentação acima, determinou que a decisão sobre o processo administrativo fosse baseada na Lei do Mais Médicos “…sem utilizar qualquer interpretação restritiva com base nos arts. 2º, caput, e art. 8°, caput, da Portaria SERES 531, que possa limitar a pré-seleção aos aspectos do município, devendo, em verdade, ser considerados na pré-seleção de municípios o âmbito da região de saúde, tal como exigido pelo art. 3º, § 1º, da Lei n. 12.871/2013”

O julgado é claro: diante de mais de uma interpretação possível da decisão do STF e da própria Portaria SERES/MEC 531/2023 “…é impositiva aquela que seja mais compatível com a normatividade legal e constitucional”.

Enfim, caso o MEC adote esse filtro, alguns cursos não seriam, e não serão, indeferidos. Afinal, eles atendem à necessidade social da região de saúde e, ao fazer isso, contribuem para o desenvolvimento do SUS, que deveria ser o norte interpretativo da decisão do Supremo Tribunal Federal.

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