O Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, via Conselho Nacional dos Direitos das Pessoas Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Trans, Queers e Intersexos, reestabelecido pelo Decreto 11.471, de abril de 2023, publicou a Resolução nº 02, de 19 de setembro de 2023, que estabelece parâmetros para a garantia das condições de acesso e permanência de pessoas travestis, mulheres e homens transexuais, e pessoas transmasculinas e não binárias - e todas aquelas que tenham sua identidade de gênero não reconhecida em diferentes espaços sociais – como nos sistemas e instituições de ensino. A norma também formula orientações quanto ao reconhecimento institucional da identidade de gênero e sua operacionalização.
Polêmica
A normativa causou controvérsia especificamente em virtude de informações divulgadas no sentido de que nela haveria uma determinação de criação de "banheiros unissex'" Porém, esta informação não é verdadeira.
Em primeiro lugar porque a norma não tem como foco principal a questão da infraestrutura dos espaços sociais, mas o tema da identidade de gênero. Em segundo lugar porque, em relação a banheiros, existe apenas uma indicação de “instalação de banheiros de uso individual”, “sempre que possível”. Em terceiro lugar porque, de fato, sequer há menção a banheiros unissex.
Além disso, a questão da identidade de gênero já é um tema sensível para as escolas, que sofrem com ações judiciais e discussões internas, com a comunidade acadêmica, sem parâmetros claros. E, nesse sentido, orientações sobre adaptações razoáveis são bem-vindas.
Uma destas orientações é exatamente o uso de banheiros com espaços de uso individual, um modelo que evita a polêmica, sendo o mesmo padrão usado por hotéis e outros espaços compartilhados e adaptados à diversidade cultural e de gênero.
Diversidade
A luta contra a discriminação em relação a qualquer comportamento que destoe do padrão heteronormativo e pela conquista de direitos vem ganhando mais espaço em nossa sociedade e, também, novas formas de identificação.
Na década de 1980, a sigla que identificava este movimento de resistência era GLS, referenciando-se a gays, lésbicas e simpatizantes. Nos anos 90, passou a ser GLBT, com a inclusão de bissexuais e pessoas trans. Posteriormente, mais visibilidade foi dada às mulheres lésbicas, alterando-se a sigla para LGBT e, atualmente, novos termos foram incluídos, com a denominação LGBTQIAP+.
Algumas siglas ainda causam dúvidas, como o I, de Intersexo, nomenclatura conferida às pessoas que nasceram com a genética diferente do XX ou XY e possuem a genitália ou sistema reprodutivo fora do sistema binário homem/mulher. Hoje, são reconhecidas pela ciência pelo menos 40 variações genéticas, dentre elas XXX, XXY, X0, provando que o corpo físico não define gênero nem sexualidade.
O A, de Assexual, refere-se ao indivíduo que não sente nenhuma atração sexual por qualquer gênero e o P, de Pansexualidade, designa a orientação sexual em que as pessoas desenvolvem atração física, amor e desejo por pessoas independentemente de sua identidade de gênero.
O sinal de “mais” (+) ao fim da sigla significa a existência de outras orientações sexuais e identidades de gênero, compreendendo o fato de que a diversidade de gênero e sexualidade é fluida e pode mudar a qualquer tempo. O sinal substituiu o ponto final que as siglas anteriores carregavam.
As demais letras: o L de Lésbicas, o G de Gays, o B de Bissexuais e o T de Transexuais, Transgêneros e Travestis representam conceitos mais familiares para a sociedade, mas ainda passíveis de dúvidas e confusões, pelo que convidamos a todos para conhecer o Manual de Comunicação LGBTI+ para obter esclarecimento confiável.
Nele podemos encontrar informações detalhadas sobre estas, outras nomenclaturas, e mais, como:
sexualidade, gênero e sexo biológico;
orientação sexual;
identidade e expressão de gênero;
discriminação, preconceito e estereótipo; e, dentre outros,
termos e comportamentos a evitar;
O Manual cumpre muito bem sua função de substituir preconceito por informação correta e ainda nos lembra que os estudos de gênero e sexualidade mudam e vão continuar mudando e evoluindo, assim como qualquer outro campo das ciências.
Novidades da Resolução nº 02, de 19/23 do CNCD/LGBT
Pois bem, a primeira orientação da Resolução nº 02, de 19/23 do CNCD/LGBT é que as instituições e redes de ensino, públicas e privadas, em todos os níveis e modalidades, deve garantir o reconhecimento e adoção do nome social aos/às estudantes cuja identificação civil não reflita adequadamente sua identidade ou expressão de gênero, mediante solicitação do próprio interessado, (Resolução nº 01/18, do CNE). Neste caso, a orientação tem força normativa, pois tem fundamento no Decreto nº 8.727/2016.
Continuando, deve ser garantido a todos que o solicitarem o direito ao tratamento oral exclusivamente pelo nome social, em qualquer circunstância, a exemplo de chamada para registro da frequência.
O campo 'nome social' deve ser inserido precedendo o nome de registro em todos os formulários e sistemas de informação utilizados nos procedimentos de seleção, inscrição, matrícula, registro de frequência, avaliação e similares.
O nome de identificação civil do estudante – vinculado ao social - ficará registrado apenas no registro administrativo. Em instrumentos internos de identificação e na emissão de documentos oficiais deve ser garantido o uso exclusivo do nome social. Em caso de emissão de documentos oficiais o nome civil virá no verso e o nome social em destaque.
Mais uma vez nos reportaremos ao Manual de Comunicação LGBTI+ para reforçar o conceito de ‘nome social’ e contextualizar a atual medida do CNCD/LGBT.
“O nome social é aquele escolhido por travestis e transexuais de acordo com o gênero com que se identificam, independentemente do nome que consta no registro de nascimento. O nome social já pode ser usado, por exemplo, em atendimentos no Sistema Único de Saúde (SUS), para inscrição no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) e em cartões de contas bancárias, instrumentos de pagamentos, em canais de relacionamento e em correspondências de instituições financeiras.”
O direito de existir de acordo com a identidade e/ou expressão de gênero - arts. 5º, 7º e 8º
A Resolução garante o uso de banheiros, vestiários e demais espaços segregados por gênero, se existirem, de acordo com a identidade e/ou expressão de gênero de cada estudante, ou seja, de acordo com a forma como cada pessoa sente que ela é em relação ao gênero masculino e feminino.
Na existência de uniformes diferentes ou outros elementos de indumentária na instituição de ensino, deve ser facultado o uso de vestimentas conforme a identidade ou expressão de gênero de cada estudante.
Quanto as pessoas autodeclaradas transexuais e travestis, e pessoas não binárias, a norma garante a livre expressão de gênero a seu critério, sendo garantida também a escolha do corte de cabelo e/ou uso de acessórios condizentes com sua identidade e/ou expressão de gênero.
Contextualizando, o binarismo de gênero é a ideia de que só existe o masculino e o feminino; o homem e a mulher. Para as pessoas não-binárias este é um conceito limitante.
Implementação de políticas de proteção
Infelizmente, a LGBTIfobia, ou seja, o medo, a aversão, ou o ódio irracional às pessoas que manifestem orientação sexual ou identidade/expressão de gênero diferente dos padrões heteronormativos, ultrapassa a hostilidade e a violência recai sobre os LGBTI+, devendo ser combatida com a punição legal e, sobretudo, com a educação.
Na inexistência de políticas públicas afirmativas que contemplem a comunidade LGBTI, o preconceito e a discriminação ocupam os espaços sociais, inclusive as instituições de ensino, motivo pelo qual também foi incluída na Resolução (art. 6º) a implementação de algumas ações para minimizar riscos de violências e/ou discriminações. Elas foram especificadas em 3 incisos:
I - sempre que possível, fazer a instalação de banheiros de uso individual, independentemente de gênero, para além dos já existentes masculinos e femininos;
II – a realização de campanhas de conscientização sobre o direito à autodeterminação de gênero das pessoas trans e suas garantias; e
III – a fixação de cartazes informando se tratar de espaços seguros e inclusivos para todas as pessoas.
Como já mencionamos, a educação é um dos caminhos para corrigirmos a LGBTIfobia, principalmente em se tratando de um país:
que abraça a ideia de que o direito à igualdade sem discriminações abrange a identidade ou expressão de gênero;
que apoia a identidade de gênero como manifestação da própria personalidade da pessoa humana e, como tal, cabe ao Estado apenas o papel de reconhecê-la, nunca de constituí-la;
que certificou que a pessoa transgênero que comprove sua identidade de gênero diversa da que lhe foi designada ao nascer, por autoidentificação firmada em declaração escrita desta sua vontade, possui direito fundamental subjetivo à alteração do prenome e da classificação de gênero no registro civil pela via administrativa ou judicial, independentemente de procedimento cirúrgico e laudos de terceiros, por se tratar de tema relativo ao direito fundamental ao livre desenvolvimento da personalidade. (tópicos da ADI 4.275 STF).
Vale apontar que a Resolução nº 02, de 19 de setembro de 2023, também se aplica aos processos de acesso às instituições de ensino, como concursos e inscrições, para as atividades de ensino regular ofertadas continuamente e para as atividades eventuais.
Legislação
Além da decisão manifestada na ADI de 2019, conhecemos a postura do Estado por meio da legislação. O Art. 5º da Constituição Federal estabelece a igualdade de todos perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, inclusive as diferenças quanto a sexo, a orientação sexual, a identidade ou a expressão de gênero.
Somos signatários de vários documentos e tratados internacionais, em especial da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (1966), do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1966), do Protocolo de São Salvador (1988), da Declaração da Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata (Durban, 2001) e dos Princípios de Yogyakarta (Yogyakarta, 2006).
A LDB preza, como princípios do ensino, entre outros, a igualdade de condições para o acesso e permanência na escola e o respeito à liberdade e o apreço à tolerância. Temos a Portaria do Ministério da Educação nº 33, de 17 de janeiro de 2018, que define o uso do nome social de travestis e transexuais nos registros escolares da Educação Básica do País, para alunos maiores de 18 anos.
A Resolução nº 1, de 19 de janeiro de 2018, da Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação, outra importante norma na área, foi publicada para definir o uso do nome social de travestis e transexuais nos registros escolares e reafirma que os princípios que norteiam a legislação educacional no país asseguram o respeito à diversidade, inclusive sexual.
O Estatuto da Juventude (Lei nº 12.852/13), por sua vez, dispõe sobre os direitos dos jovens e o já citado Decreto nº 8.727, de 2016, sobre o uso do nome social e o reconhecimento da identidade de gênero de pessoas travestis e transexuais no âmbito da administração pública federal direta, autárquica e fundacional.
Ainda, de se considerar os compromissos assumidos pelo Governo Federal no que concerne à implementação do Programa 'Brasil sem Homofobia - Programa de Combate à Violência e à Discriminação contra LGBTQIA+ e de Promoção da Cidadania Homossexual' (2004), do Plano Nacional de Promoção da Cidadania e dos Direitos Humanos de LGBTQIA+ (2009), do Programa Nacional de Direitos Humanos - PNDH-3 (2009) e do Plano Nacional de Políticas para as Mulheres (2012).
Enfim, que jamais enfrentemos uma LGBTIfobia de Estado - ou LGBTIfobia institucionalizada. Que nossas leis e jurisprudência estejam sempre de acordo com as mencionadas.
Crianças e adolescentes
No art. 10 da Resolução existe a previsão de que as orientações sejam estendidas e garantidas para todas e todos as/os estudantes transexuais menores de 18 anos, sejam adolescentes ou crianças, incluindo a tomada de decisão apoiada pelos pais ou responsáveis legais, que devem ser consultados sobre a expressa autorização em conjunto com a criança ou o adolescente.
Pois bem, o tema “crianças trans” ainda é desconhecido e/ou incompreendido por grande parte da sociedade. Neste ponto, sugerimos a leitura da Nota Técnica: Acesso à Saúde de crianças Trans, produzido pela Associação nacional dos Travestis e Transexuais.
Produzida por técnicos especializados, profissionais de saúde, pesquisadores e ativistas que se debruçam sobre os direitos e a garantia de cuidados para crianças e jovens trans, a Nota Técnica traz uma análise aprofundada, histórica e com todos os fundamentos legais que permeiam o tema da população trans menor de 18 anos. Ao final, oferece alternativas para a tomada de decisões.
Acima de qualquer coisa, como bem considerado na Nota, ‘crianças trans não precisam acompanhar as ruminações adultas sobre veracidade ou artificialidade de seu gênero, pois são merecedoras de uma infância onde isso não seja uma “questão”’.
E as escolas devem fazer o seu papel, que é o de adotar medidas e políticas para eliminar o bullying e o comportamento discriminatório. Caso existam problemas com a própria instituição de ensino, que se recuse a garantir os direitos previstos na Resolução, deve ser emitida uma explicação registrada por escrito, orientando-se aos pais e responsáveis legais a efetivar denúncias para os órgãos de proteção às crianças e adolescentes.
Projetos
A distorção de projetos que garantem dignidade às pessoas LGBTQIA+ não é coisa rara no Brasil.
O Projeto Escola sem Homofobia, por exemplo, que previa material didático para discutir violência de gênero e preconceito em escolas, terminou deturpado por um setor mais conservador da população, deslegitimando os direitos da população LGBTQI+. O projeto recebeu o apelido malicioso “Kit Gay” e foi, então, combatido por outras esferas (preconceituosas) da sociedade.
A atual Resolução também está sob ataque – infelizmente agora até de congressistas –, que se utilizam de postagens em redes sociais para incitar a população contra a normativa. As atitudes fizeram com que o Ministro de Estado dos Direitos Humanos e da Cidadania requeresse providências à Advocacia Geral da União.
Finalizando, é preciso derrubar estereótipos a respeito de projetos que buscam promover a cidadania da população LGBTI+. Sejam eles educacionais ou não, são legítimos, necessários e cumprem o previsto no art. 5º da Constituição Federal e nas declarações e resoluções da ONU e da OEA.
A tarefa não é fácil, mas o caminho certamente é a educação; normas com imposições e opiniões sem muito fundamento podem acirrar as diferenças. Talvez por isso seja importante encarar a resolução em questão como uma orientação importante, evitando torna-la um novo problema.
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