Em despacho bem fundamentado o Supremo Tribunal Federal decidiu solicitar da AGU e do MEC mais informações sobre as ações relativas a cursos de Medicina.
A clareza do despacho proferido é importante para demonstrar o quão inconsciente é o pleito da ADC nº 81-DF, que alega de início que existe “…cerca de uma centena de ações…” sobre cursos de Medicina, sem comprovar o número correto de processos. Nesse caso, mesmo que Autora tentasse alegar que não tinha acesso ao número exato de ações por não ser parte nos processos – não obstante poder obter dados por meio da Lei de acesso à informação ou de e-discovery em bancos de dados públicos – seria de se esperar que a AGU, que se manifestou favoravelmente ao pedido original da ADC, trouxesse uma informação detalhada.
Entretanto, a Advocacia da União limita-se a dizer em nota de rodapé que seriam “aproximadamente 180 processos judiciais ativos”, sem detalhá-los. Aliás, a petição da AGU não juntou um documento sequer e, talvez por esse vazio, não referendou o pedido de medida cautelar, limitando-se à manifestação pela constitucionalidade do Art. 3º, da Lei 12.871/2013.
Apenas para demonstrar o quão relevantes são os dados, é importante citar estudo do CNJ sobre judicialização da saúde, pesquisa completa e séria, na qual foi detectada a propositura de 58.774 processos sobre saúde apenas nos Tribunais Federais e no ano de 2020, sendo constatados mais de 250 mil processos em 05 anos. Nesse caso, sim, o Conselho estava embasado para tratar do tema da judicialização. Na pesquisa, um gráfico sobre o “percentual de deferimentos em relação aos casos novos e processos julgados” demonstrou, por exemplo, resultados acima de 80% nos principais grupos de ações propostas (fornecimento de medicamentos e serviços hospitalares) e isso foi importante, por mostrar que os remédios obtidos e leitos ocupados são fruto direto das decisões. Com detalhes assim, o estudo pode até mesmo concluir que as decisões impactam diretamente no orçamento da saúde.
Este é um exemplo com dados já tabulados, mas há também outro, ainda pendente de análise. As ações sobre formatura antecipada de alunos de Medicina, propostas com base na Lei 14.040/2020, mesmo após o auge da pandemia, são outro caso de potencial judicialização. Os processos, propostos em número expressivo, podem ter impactado muito mais o ensino médico e a qualidade dos serviços na área do que os protocolos de pedidos de curso. Como dado concreto, foi divulgado pelo MEC que apenas em 2020 havia 6820 profissionais médicos formados antes de concluírem seus cursos, parte desses profissionais ajuizaram ações judiciais. Esses processos, em suma, podem ter colocado no mercado um número enorme de médicos com formação incompleta, afinal, os alunos que efetivamente se encaixavam nas regras excecionais daquele momento não precisavam judicializar.
Os dois casos mencionados ilustram possíveis exemplos de judicialização. Na primeira situação os dados permitem algumas conclusões; na segunda, faltam informações relevantes. A ADC nº 81 é um processo que, neste momento, se assemelha ao segundo exemplo.
Sem informações claras sobre o número de ações e sobre seus efeitos, a alegação de risco à saúde pública é só uma ilação. Nesse sentido, uma análise das alegações de risco na petição inicial demonstrará que foi mencionado “…risco de danos irreparáveis à UNIÃO, às demais instituições de ensino do país, aos futuros alunos e, especialmente, aos cidadãos que buscam uma melhoria na saúde”, tudo sem qualquer dado ou mesmo congruência com os fatos.
Por exemplo, em relação à União o alegado risco seria o “desmantelamento da política pública”, mas a própria União suspendeu o Programa Mais Médicos e, em grande parte, o transformou em um novo programa, o Médicos Pelo Brasil (Lei 13.958/2019). Quanto às Instituições o risco seria a desconsideração dos “vultosos investimentos”, o que não ocorre, pois as IES receberam seus cursos de Medicina conforme previsto nos editais.
Sobre os alunos e a sociedade, enfim, foi dito que: “…não irão se formar e, se eventualmente o fizerem, serão médicos despreparados e prestarão um desserviço à população”. Essa alegação de risco parece ser a mais inconsistente, pois o próprio MEC tem regra sobre a garantia do direito dos estudantes, mesmo quando as escolas têm seus atos invalidados (Art. 73, § 2º, do Decreto 9.235/2017). Ou seja, mesmo se houvesse uma improvável reversão na autorização dos cursos, nenhum prejuízo ocorreria aos estudantes. Por fim, não há nenhum tipo de indicação de que um estudante formado em curso bem avaliado acabe sendo um profissional “despreparado” ou termine prestando “desserviço a população”, apenas porque, antes da regulação do MEC, o pedido de autorização de seu curso foi protocolo por ordem judicial. Aqui, a regra deve ser a confiança no rigor da avaliação feita pelo MEC.
Como visto, não há qualquer indício concreto de risco grave para justificar a ação constitucional. Por isso, talvez, o Ministro relator da ADC decidiu solicitar informações…
“…acerca das ações judiciais ajuizadas desde abril de 2018, em cujo objeto figure a abertura de novos cursos de medicina, nas quais houve deferimento de medida liminar (bem como se as liminares foram mantidas pelas instâncias recursais, e evidenciando o atual estado de cada processo)”;
e sobre “os processos administrativos instaurados com o objetivo de avaliar a abertura de novos cursos de Medicina, por força de decisão judicial…”.
Nesse último caso, solicitou, ainda, dados sobre: “(a) as pessoas jurídicas que figuram como requerentes em cada procedimento; (b) quais processos administrativos foram finalizados de forma favorável à abertura de novos cursos; (c) em quais processos administrativos já encerrados houve a negativa de abertura de novas escolas; (d) quais processos administrativos nessa situação estão em andamento”.
Os quais podem ser úteis para verificar a concentração de mercado e para aferir o funcionamento da regulação.
A AGU, que responderá sobre as ações, e o MEC, que detalhará os processos administrativos, terão 15 dias. Cumprida a solicitação poderá ser constatado o volume e a efetividade da propensa judicialização. Poderá ser analisado, também, se cada processo é um fator de risco para o sistema de saúde ou se os filtros de qualidade do MEC funcionam bem para pedido de autorização de cursos protocolados a partir de processos judiciais.
Em complemento, foi solicitada outra informação sobre: “pedidos de aumento de vagas em cursos de Medicina já existentes” feitos e deferidos em paralelo ao procedimento do chamamento público. Neste caso, o despacho também requereu expressamente o detalhamento das instituições que receberam as vagas. Esta informação é interessante, pois o aumento de vagas não está diretamente ligado à constitucionalidade do Art. 3º, da Lei 12.871/2013. Ou seja, sendo ou não constitucional o chamamento público deveria existir aumento de vagas para os cursos de Medicina existentes. Diante disso, o que o STF busca pode ser uma análise dos efeitos anticoncorrenciais da Portaria 328/2018, essa sim responsável por bloquear os aumentos de vagas.
Visível, portanto, o interesse do STF em dados, tal e qual ocorreu nos processos analisados pelo Tribunal Constitucional Alemão, que citamos em artigo anterior. Nos casos descritos, quando deparou com pedidos contrários à liberdade profissional, a Corte Alemã decidiu as questões afastando, com base em dados concretos, alegações genéricas de risco feitas pelas entidades corporativas demandantes.
Em termos gerais, vislumbrando uma análise estatística, poderíamos inferir que a abordagem para a análise do risco no caso brasileiro deve partir da análise de quantos processos judiciais geraram protocolo de pedidos de autorização (Paut) e quantos foram indeferidos ou julgados improcedentes (Pimp), depois as conclusões dessa comparação podem ser sopesadas em face do resultado efetivo, ou seja, do número de processos administrativos que geraram portarias de autorização (Raut) e do número de processos administrativos indeferidos (Rimp). Além disso, outras variáveis, como o conceito obtido nos processos administrativos ou o momento e o tempo de propositura de cada processo judicial também devem ser consideradas, pois é o conceito de curso que mede a qualidade do pedido e cada processo administrativo pode demorar até 02 anos para gerar análises de qualidade. Nos arriscamos a pensar de maneira assim, tão amadora, apenas para estimular os estudiosos, que podem criar estratégias tecnicamente corretas para avaliar o risco e a qualidade dos cursos requeridos.
Por outro lado, pensando apenas em termos jurídicos, qualquer resultado diferente de uma proporção de 1 para 1 - ou seja, de um novo curso para cada pedido de autorização feito a partir de processo judicial - será prova clara de que é o Ministério da Educação quem decide os processos regulatórios. Prova do óbvio, mas prova necessária em um contexto no qual várias pessoas em Audiência Pública alegam que há “cursos criados por liminares”.
A efetividade da regulação do MEC pode servir também para detalhar se os resultados são melhores ou piores que os esperados para o Mais Médicos. Como existe uma análise de demanda social pelo Conselho Nacional de Saúde (conforme Resolução CNS 350/2005), deve ter ocorrido uma preocupação na distribuição das vagas, com aumento, por exemplo, na região norte e nordeste. Portando, o STF terá oportunidade de analisar se o prognóstico dos Poderes Executivo e Legislativo para o Programa Mais Médicos realmente ocorreu, se sistema de chamamento público é um diferencial para a distribuição de vagas em cursos de Medicina ou se os efeitos distributivos são equivalentes ao processo regulatório comum.
Em suma, é bom constatar que o STF está no caminho correto para analisar com cautela o tema dos cursos de Medicina e a exigência do chamamento público, contida no procedimento do Programa Mais Médicos, hoje sobrestado. Talvez seja interessante apenas buscar mais alguns dados, como os pareceres do CNS, e tabular os dados já existentes para avaliar os efeitos distributivos do PMM e do processo regulatório comum do MEC.
Depois dessa análise poderá ser julgado, provavelmente pelo plenário da Corte, o pedido cautelar – que, sem risco comprovado, seria inócuo – e o pedido final da ação de constitucionalidade. Diante do que o senso comum indica, as expectativas são desfavoráveis à ADC; vejamos o que demonstrarão os dados.
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