Atualmente, muitas universidades e faculdades utilizam-se das notas do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) para o preenchimento das vagas de seus cursos. As que não as utilizam ou o fazem como alternativa à própria prova, precisam elaborar o exame vestibular e aplica-lo aos candidatos.
É viável e legal a aplicação exclusivamente remota desse vestibular?
A resposta positiva encontra apoio no fato de que as instituições de ensino superior têm total autonomia para elaborar as questões do seu concurso de ingresso. Não faz nenhum sentido, portanto, que se fizesse necessário normatizar algum expediente que é da inteira alçada das instituições.
Este posicionamento tem suporte na Constituição da República, que trata do ensino como atividade privada que, dentro da moldura legal, pode ser exercida livremente. Está em harmonia, também, com as regras sobre universidades e centros universitários, contidas na própria CR, na LDB e no Decreto 9.235/2017.
Mesmo para as faculdades, a regra é clara sobre sua competência para criar e executar a proposta pedagógica (art. 12 da LDB), o que inclui os processos avaliativos de ingresso e durante o curso.
Importante que a instituição cumpra pelo menos as mínimas diretrizes da legislação educacional e o padrão de qualidade essencial para a avaliação. Caso isso seja efetivado, as IES possuem autonomia para tal.
E não existe, no caso, nenhuma norma que impeça que o processo seletivo seja realizado totalmente a distância. As IES possuem competência e autonomia para implementar a transformação do presencial para o virtual; mudança, inclusive, mais que necessária e esperada.
A propósito, se antes da necessidade de isolamento social em razão da pandemia da COVID-19, anunciada em 13 de março deste ano, já era urgente que o vestibular pudesse ser ofertado em diferentes vias, agora se faz ainda mais conveniente. Inevitável, diríamos.
Interessante que já existe exemplo dessa estratégia no próprio governo federal. O ENEM Digital, anunciado em 2020 pelo próprio MEC, será aplicado pela primeira vez nos dias 22 e 29 de novembro, para até 100 mil participantes em todo o país. Inicialmente as provas digitais serviriam a 50 mil estudantes, em todos os estados brasileiros. Posteriormente à publicação do edital do Enem Digital 2020, algumas mudanças foram realizadas para atender um número maior de participantes.
A proposta do MEC, inclusive, se presta a aumentar ano a ano a quantidade de participantes que farão as provas digitais, até que elas substituam totalmente as provas impressas, em 2026.
No caso do MEC, os estudantes se deslocarão até os locais de prova, determinados pelo INEP, e lá realizarão os exames. Os candidatos terão acesso apenas ao sistema de prova, ficando impossibilitados de acessar a internet ou outros documentos. A exceção fica por conta da prova de redação, que será manuscrita.
Guardadas as diferenças entre a prova do MEC e os vestibulares totalmente a distância, podemos perceber com clareza que transformar processos seletivos não só é lícito como é comum no contexto fluido da modernidade em que vivemos.
Em se tratando de instituições particulares, vigora também a Lei de Liberdade Econômica (Lei 13.874/2019), que não apenas garante a liberdade de estruturação das atividades econômicas, mas proíbe o chamado abuso de poder regulamentar. E, por certo, proibir tal inovação seria um ato abusivo.
Nessa linha, é necessário destacar mais uma vez a iniciativa do próprio Ministério da Educação que, inovando no tema e sem modificar a LDB, criou o ENEM e o SISU, além de incluir os alunos do FIES por meio de critérios que não são os escolhidos no edital de vestibular da Instituição de Ensino.
Mudanças são bem vindas caso beneficiem os estudantes, vide o Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei 13.146/2015), que prevê, no art. 30, que deve ocorrer a “disponibilização de provas em formatos acessíveis”. Regras como esta reiteram a autonomia das instituições de ensino e demonstram a capacidade do legislador em vislumbrar o benefício de novas tecnologias.
Enfim, é possível a substituição do processo seletivo presencial, de vestibular ou transferência, por processo seletivo usando tecnologias da informação sem a necessidade de presença simultânea do aluno e de representante da IES no mesmo local, ou seja, são possíveis e legais os processos seletivos online.
O estudante, no caso, pode fazer a prova na instituição de ensino ou em seu domicílio, por meio da internet, e em ambos os casos as questões relacionadas a seu concurso serão as mesmas.
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei 9.394/1996) prevê que a educação superior abrange os cursos de graduação, abertos a candidatos que tenham concluído o ensino médio ou equivalente e tenham sido classificados em processo seletivo, que deve ser tornado público, sendo obrigatórios a divulgação da relação nominal dos classificados, a respectiva ordem de classificação e o cronograma das chamadas para matrícula, de acordo com os critérios para preenchimento das vagas constantes do edital.
Ao candidato, classificado ou não, é assegurado ter acesso às suas notas ou indicadores de desempenho em provas, exames e demais atividades da seleção e à sua posição na ordem de classificação de todos os candidatos.
A LDB também prevê que instituições de educação superior, na hipótese de existência de vagas, devem aceitar, para cursos afins, a transferência de alunos regulares, desde que passem pelo processo seletivo.
Ou seja, o processo seletivo é pré-condição para o acesso ao ensino superior, seja pelo ingresso inicial, seja pela transferência de aluno devidamente matriculado.
Qual a razão de existir um processo seletivo?
Já vimos que existem algumas regras mínimas para que o processo seletivo se concretize de maneira adequada.
São necessários:
a existência de uma ordem de classificação e um cronograma das chamadas para matrícula;
a garantia de acesso às notas ou indicadores (consequentemente, a garantia de critérios claros para classificação);
a prioridade de acesso para as pessoas com renda abaixo de 10 salários mínimos;
o uso das competências e as habilidades definidas na Base Nacional Comum Curricular como referência.
Esses critérios refletem o princípio educacional de igualdade de acesso (art. 206, I, da Constituição da República), a diretriz constitucional de meritocracia (Art. 208, V da CR) e o objetivo geral do estado de redução das desigualdades sociais (Art. 3º, III, da CR).
Ou seja, o processo seletivo existe, com os devidos critérios e normas, para que se garanta um mínimo de igualdade de acesso ao ensino, uma forma de discriminação positiva.
Requisitos mínimos do processo avaliativo
Interessante comentar que a Portaria 391/2002 determina que todo processo seletivo seja dotado de prova que avalie a redação dos candidatos em língua portuguesa.
“Art. 2º Todos os processos seletivos que se refere o artigo anterior incluirão necessariamente uma prova de redação em língua portuguesa, de caráter eliminatório, segundo normas explicitadas no edital de convocação do processo seletivo.
§ 1º Em qualquer caso será eliminado o candidato que obtiver nota zero na prova de redação.
§ 2º Cada instituição de ensino deverá fixar no edital do processo seletivo a nota mínima exigida na prova de redação.”
Além disso, dois pareceres do Conselho Nacional de Educação (Parecer CNE/CP 98/99 e Parecer CNE/CES 584/2017) trazem mais requisitos. O primeiro parecer deixa clara a necessidade de se assegurar a qualidade do processo seletivo-avaliativo, levando-se em consideração, como norteadores dos procedimentos avaliativos, padrões universalmente aceitos.
A avaliação deve ser útil, ou seja, deve responder às necessidades dos interessados. O segundo grupo de padrões se concentra na viabilidade, entendendo-se que deva ser passível de realização, em situações reais e de maneira economicamente factível. O terceiro grupo se relaciona à ética, no sentido de que uma avaliação deva sempre ser conduzida com justiça, retidão e respeito em relação a todos os envolvidos no processo ou àqueles afetados por seus resultados. Finalmente, o quarto grupo de padrões enfatiza a curacidade, pois toda avaliação deve conter informações com exatidão de valor.
Neste grupo deve-se, ainda, destacar que a dimensão mérito se refere à eficiência e eficácia de cada projeto, enquanto a dimensão relevância se refere à efetividade social das ações em termos de seus impactos no contexto em que se insere e na população a que se destina.
Em termos operacionais, a eficiência diz respeito, entre outros, aos processos decisórios vigentes em cada projeto, enquanto a eficácia está relacionada aos resultados mais imediatos alcançados pelos projetos. Por fim, a efetividade, ao descrever os benefícios que a execução do projeto trouxe para os seus destinatários, representa o impacto ou relevância social dos projetos, isto é, os verdadeiros resultados.
O segundo parecer é resultado de consulta do MPF de Rondônia sobre a legalidade de questões repetidas em exames e nos parece interessante explicitar o que foi decidido pelo Conselho.
O relator ressalta que a questão não é prevista na legislação educacional e reforça que a elaboração de questões para o processo de ingresso ao ensino superior é de competência da Comissão Organizadora do Concurso Vestibular ou órgão congênere, não fazendo nenhum sentido normatizar esse expediente. Existindo alguma semelhança ou mesmo igualdade nas questões, pressupõe-se uma mera coincidência. E de inteira responsabilidade das instituições, autônomas que são.
Ou seja, dentro dos preceitos de lisura requeridos para todos os concursos e com comprometimento com a boa fé dos participantes, não é regra que questões iguais ou muito semelhantes apareçam no caderno de prova. Mas se ocorrer não há nenhuma ilegalidade ou questão que mereça reprimenda.
Enfim, o vestibular hoje pode ocorrer de maneira tradicional, presencial, mas também de maneira exclusivamente remota, o que se tornará ainda mais comum de agora em diante, em face do cenário inédito que nos trouxe a pandemia do coronavírus.
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